Coimbra  19 de Julho de 2025 | Director: Lino Vinhal

Semanário no Papel - Diário Online

 

Joana Gil

Primeiro estranha-se, depois também

20 de Junho 2025

Quem está habituado à arquitectura tradicional das casas portuguesas há-de deparar-se por certo, nas suas primeiras incursões na Bélgica, com especificidades que surpreendem. Há muito por onde estranhar, na verdade. O difícil quando nos deparamos com outra cultura é, no primeiro embate, perceber o que é que são elementos acidentais e o que são elementos estruturais. Por exemplo, se num restaurante, num país estrangeiro, me trazem pão e água de graça para a mesa, isso é uma cortesia excepcional daquele restaurante ou, pelo contrário, é o normal e esperado naquele país? O conhecimento e compreensão das peculiaridades de cada cultura é fundamental para sabermos o que esperar, o que procurar, o que exigir e o que rejeitar.

Quando se procura casa, este conhecimento torna-se particularmente importante, pois sem ele não sabemos se vale a pena continuar a procurar o que desejamos ou se estamos apenas embrenhados numa caça aos gambuzinos.

As cozinhas, por exemplo. A cozinha é uma divisão tradicionalmente importante na arquitectura das casas portuguesas. Embora hodiernamente comecem a aparecer cada vez mais casas com sala e cozinha partilhadas, a cozinha é, em si mesma, uma instituição – portuguesa e não só. Na Bélgica, será antes um achado, sobretudo em apartamentos. O normal é a cozinha fazer parte da sala e as duas divisões serem apenas uma, com as vantagens de convivialidade mas os inconvenientes de odores inerentes. As salas são, aliás, o local de excelência das casas belgas: enormes, por contraste com os quartos. Um português roubaria de bom grado uns metros quadrados à sala para ter mais um quarto, ou pelo menos quartos mais desafogados. Para um belga, nenhuma sala é grande demais. Já as casas-de-banho em nada se confundem com as casas-de-banho portuguesas. Em Portugal, o bidé é presença habitual, mercê porventura da influência que a presença árabe de séculos deixou no Sul da Europa. Embora tenha já havido em Portugal quem, mais movido por pragmatismo económico do que por considerações de higiene pessoal, tenha procurado eliminar a obrigatoriedade do bidé, esta peça de louça sanitária continua a fazer parte das casas portuguesas. Debalde se procurará um bidé em terras belgas. A higiene facultada pelo bidé é então compensada com conforto adicional na lavagem das mãos e do rosto: raríssimas são as casas-de-banho belgas que dispõem de apenas um lavatório. O normal é haver dois, um para cada membro do casal, ganhando-se em eficiência matinal aquilo que se perde em romantismo – ou conflito… – na hora de lavar os dentes. A localização da sanita (numa divisão separada, onde apenas com sorte e se o bom tom do empreiteiro a tanto ajudar poderá haver um lavatório, quiçá com água quente) também deixará baralhados os portugueses num momento inicial. O que em Portugal poderá ser o lavabo, é o normal em muitas casas belgas.

Por isso, quando um português chegado à Bélgica procura casa, pode começar a ouvir na sua cabeça a canção de 1943 imortalizada mais tarde pelos Xutos e Pontapés: “As saudades que eu já tinha da minha alegre casinha…”.