A propósito de um consultório publicado sábado último num dos matutinos de Coimbra, dirige-se-nos um professor da Universidade de Lisboa, estupefacto com o que se está a passar em certos estabelecimentos da capital:
“Há até cadeias inteiras que optam por esta prática: o pior exemplo é uma cadeia de padarias, de nome Gleba. No outro dia, tive de pagar 82 cêntimos de pão com cartão…
Parece o início de uma anedota.
Há que usar o mais possível o Livro de Reclamações para alertar as autoridades para este escândalo”!
Ao que chegámos, neste neoliberalismo asfixiante em que cada um dita as regras e os poderes públicos se põem de banda…
Com efeito, em Portugal, depara-se-nos, por vezes, a recusa de aceitação de meios de pagamento convencionais de notas e moedas com curso legal.
E a pergunta surge inevitavelmente: será lícito aos distintos actores, no mercado, restringir por si só os meios de pagamento com curso legal, criando regras a que os consumidores se hajam de sujeitar?
A aceitação de notas e moedas em euros como meio de pagamento «deve ser a regra nas transacções de qualquer natureza», proclama o Banco de Portugal.
O numerário, como meio de pagamento, corresponde às notas e às moedas metálicas e é:
. Universal e de aceitação generalizada, ou seja, tem de ser aceite como meio de pagamento de bens e serviços, ao contrário dos cheques e dos cartões de pagamento, que podem não ser aceites no giro comercial;
De liquidez imediata – o pagamento do bem ou do serviço é recebido de imediato.
Porém, como consta ainda do Portal do Consumidor do BdP:
“Fora da Zona Euro o euro não tem curso legal forçado.”
Os normativos em vigor são, porém, ‘coxos’: não estabelecem sanções em caso de recusa. É de norma sem sanção que se trata, imperfeição manifesta que importa suprir sem detença.
Mas «de uma tal recusa decorrem, porém, consequências no quadro da relação contratual entre partes; nos termos do Código Civil, o devedor cumpre a obrigação quando realiza a prestação a que está adstrito, podendo inclusive o credor incorrer em mora, quando, sem motivo justificado, recusar a prestação oferecida»…
Registe-se que há, porém, restrições legais ao pagamento com numerário, como decorre da Lei n.º 92/2017:
“ É proibido pagar ou receber em numerário em transacções de qualquer natureza que envolvam montantes iguais ou superiores a 3.000 €, ou o seu equivalente em moeda estrangeira. Quando o pagamento for realizado por pessoas singulares não residentes em território português, e desde que não actuem na qualidade de empresários ou comerciantes, o limite ascende a 10 000 €.
É proibido ainda o pagamento em numerário de impostos cujo montante exceda 500 €.”
Tais restrições não se aplicam às entidades financeiras que recebam depósitos, prestem serviços de pagamento, emitam moeda electrónica ou realizem operações de câmbio manual. E também não se aplicam aos pagamentos correntes.”
O Banco Central Europeu interpela-nos:
“Podem os comerciantes recusar-se a aceitar numerário como meio de pagamento?”
Com base na Recomendação 2010/191/UE, de 22 de Março de 2010, da Comissão Europeia refere avisadamente:
i. Os comerciantes não podem recusar pagamentos em numerário, a menos que as partes [os próprios e os consumidores] tenham acordado entre si a adopção de outros meios de pagamento.
ii. A afixação de etiquetas ou cartazes a indicar que o comerciante recusa pagamentos em numerário, ou pagamentos em certas denominações de notas, não é por si só suficiente nem vinculante para os consumidores.
iii. Para que colha, terá o comerciante de invocar fundadamente uma razão legítima para o efeito às entidades que superintendam nos sistemas de pagamento.
iv. Entidades públicas que prestem serviços essenciais aos cidadãos não poderão aplicar restrições ou recusar em absoluto pagamentos em numerário sem razão válida, devidamente fundada e sancionada por quem de direito…
A violação destas regras não tem, porém, entre nós, uma qualquer sanção, o que é algo de grave.
Donde, o caminho, para se sustar a onda que pode, entretanto, submergir-nos, no afã de tudo reduzir ao digital (com as discriminações e as exclusões que daí decorrem), é forçar a mão ao legislador para que a recusa de aceitação de notas e moedas comporte sanções adequadas, proporcionadas e dissuasivas.
Só assim se cumprirá em plenitude a legalidade!
Mário Frota
Presidente emérito da apDC – DIREITO DO CONSUMO – Portugal