Foi distinguido pelos Prémios Europeus do Património Cultural/Prémios Europa Nostra 2023, na categoria “Investigação”. Falamos do projecto “Identidade e Memória – Arte Xávega”, da Praia da Tocha no concelho de Cantanhede. A Arte Xávega é considerada um dos últimos exemplos de pesca artesanal e sustentável na União Europeia. Na Praia da Tocha, onde ainda é possível encontrar vestígios dos antigos palheiros, utilizados em tempos pelos pescadores para guardar o material utilizado na faina diária, esta prática etnográfica, cultural, económica e social, com raízes profundas no mar, mantém viva a memória das comunidades que lhe dão alma.
Na sequência desta distinção europeia, no final do passado mês de Outubro, a Arte Xávega foi também homenageada, em Lisboa, pelo Centro Nacional de Cultura, numa cerimónia realizada na Fundação Calouste Gulbenkian.
Helena Teodósio, presidente da Câmara de Cantanhede, refere que se trata de “um reconhecimento muito importante” que veio no seguimento da conquista do Prémio Europa Nostra 2023, na categoria de “Investigação”, no passado dia 27 de Setembro, em Veneza, um desenvolvido pelos serviços da Divisão de Cultura, com o apoio de outras entidades locais. A edil refere-se à Junta de Freguesia da Tocha, à AMPT – Associação de Moradores da Praia da Tocha, “sem esquecer o inestimável contributo dos pescadores das campanhas de Arte Xávega, que na realidade são quem verdadeiramente tem assegurado a preservação este tipo de pesca artesanal”.
Sobre o que a Praia da Tocha representa hoje, a autarca diz que “é um dos mais importantes activos turísticos do concelho” e, como tal, tem vindo a ser “valorizada” pela Câmara Municipal, “quer do ponto de vista do ordenamento do território e da sustentabilidade ambiental e urbanística, com o intuito de conservar a atmosfera peculiar que a distingue, quer ao nível dos equipamentos culturais e desportivos, áreas em que efectivamente tem havido um forte investimento da autarquia”.
Helena Teodósio explica que a Praia da Tocha é uma estância balnear de referência também porque mantém algumas marcas identitárias fortes, como os antigos palheiros ou a Arte-Xávega, “que de resto o Município de Cantanhede tem procurado potenciar e rentabilizar em termos turísticos com várias acções e iniciativas que normalmente envolvem as entidades locais e os pescadores, como não podia deixar de ser”.
“Este desígnio, que partilhamos com todos os agentes locais, foi também materializado na construção do CIAX – Centro de Interpretação da Arte Xávega, um espaço destinado a divulgar e promover o conhecimento das dimensões, histórica, sociocultural e etnográfica da actividade piscatória tradicional que continua bem viva na Praia da Tocha”, recorda Helena Teodósio.
Ancestralidade e tradição
“Identidade e Memória – Arte Xávega” foi concebido e desenvolvido nos serviços da Câmara Municipal de Cantanhede, com apoio técnico do Centro de Estudos do Ambiente e do Mar da Universidade de Aveiro, e beneficiou de financiamento comunitário no âmbito do Regime de Apoio a Execução das Estratégias de Desenvolvimento Local do Programa MAR 2020, através de uma candidatura submetida para o efeito.
São sete os pilares fundamentais da investigação desenvolvida, explica a presidente da Câmara, designadamente sobre as características geomorfológicas das dunas, as ameaças ao sistema dunar e as suas implicações na estabilização da plataforma continental, a florestação e a fauna existente na zona costeira com inventariação das espécies associadas à pesca da Arte Xávega, bem como aspectos relacionados com o tipo de embarcação utilizados e a caracterização social da comunidade piscatória.
Um dos objectivos passa pela preservação da tradição, “que se tem mantido devido à existência das campanhas de pescadores. Isso acontece porque são pessoas que fazem o que gostam, que têm uma profunda ligação ao mar e à actividade que desenvolvem sem terem o retorno económico que deveriam ter. É uma vida bastante dura e os que persistem nela fazem-no por paixão a uma herança que receberam e procuram manter, o que acentua a dimensão etnográfica e cultural da Arte Xávega que também está presente na gastronomia”.
É essa dimensão que justifica as acções da Câmara Municipal relativamente à Arte Xávega, designadamente “o apoio à construção dos armazéns dos pescadores, o suporte a iniciativas culturais em torno dela ou sua divulgação e promoção como factor de atractividade turística da Praia da Tocha”.
Helena Teodósio destaca também as “iniciativas desencadeadas para consciencialização das pessoas sobre a importância desta pesca artesanal como como amiga do ambiente, o seu papel na fundação do lugar e a sua ancestralidade celebrada em várias manifestações das tradições locais”.
E esta é a parte “que as pessoas retêm mais facilmente, pois comporta uma dimensão etnográfica muito apelativa e que tem a ver com as referências identitárias de carácter social, como os palheiros e a Arte Xávega, mas na verdade o estudo realizado tem uma acentuada componente científica sobre a morfologia dessa parte do território do concelho de Cantanhede”.
“Destaco, ainda, a labuta das gentes da Gândara que foram responsáveis pelo povoamento e desenvolvimento das pobres e extensas terras arenosas dessa zona, o reconhecimento da sua adaptação não invasiva ao meio ambiente, quer no trabalho agrícola que também praticavam, quer na prática de um tipo de pesca ambientalmente sustentável e respeitadora do meio marinho, sem esquecer o sistema de economia comunitária característico das campanhas de pesca, entre outros aspectos”, acrescenta.
Retorno económico cada vez menor
Sobre o risco de extinção da Arte Xávega, Helena Teodósio salienta que “é preciso perceber que se trata de uma actividade económica, da qual depende a vida de muitas pessoas, e, portanto, é de supor que só se manterá enquanto os pescadores tiverem algum retorno. O problema é que esse retorno é cada vez menor e isso representa claramente um risco”.
Quanto às principais ameaças, a autarca realça que são muitas, entre elas, “o envelhecimento da população piscatória, os problemas decorrentes das alterações climáticas, quer pela erosão costeira, quer pelas condições marítimas adversas mais prolongadas”, sendo que considera que “os normativos legais são demasiado restritivos para este tipo de actividades, nomeadamente ao nível da venda e distribuição do produto da pesca”.
Apesar disso, a autarquia de Cantanhede promete “intensificar tanto quanto possível a celebração desta tradição e a realização de acções culturais em torno dela”. Mas uma vertente muito importante, sublinha Helena Teodósio, “é a valorização das condições em que os pescadores desenvolvem a sua actividade e, para isso, estamos muito atentos em todas as oportunidades que surjam para obtenção de apoio comunitário à renovação e modernização de equipamentos, entre outros aspectos”.
A história da Arte Xávega na Tocha
Vem do árabe “xabaka” e significa um aparelho de pesca de arrasto demersal que é lançado pelo barco de mar. Partindo da praia, desloca-se até à distância consentida pelo aparelho e à praia regressa, iniciando-se, então, o arrasto propriamente dito.
A Arte-Xávega representa uma manifestação de património cultural imaterial praticada há décadas na Praia da Tocha, reconhecidamente identitária do concelho de Cantanhede.
Segundo o etnógrafo Domingos José de Castro, na sua obra “Aveiro – Pescadores”, editada pelo Instituto para a Alta Cultura, em 1943, a Xávega é “uma arte envolvente de arrastar pelo fundo e alar para a praia, constando o aparelho, ou arte, de um saco prolongado por duas asas ou mangas, nos extremos das quais se amarram os cabos de alagem ou calas”.
Ainda não há muitos anos que, manhã cedo, soava o “inconfundível toque do búzio, a partir do qual os seis ou sete homens de cada campanha se preparavam para a pesca”, descreve o município de Cantanhede.
Depois de equipado com cordas e redes, o pequeno barco era arrastado sobre rolos de madeira até à água, afastando-se da costa duas ou três milhas. Já em terra, o arrais comandava os pescadores na tarefa de puxar, à força de braços, as cordas que prendiam a rede, arrastando-a para a praia, operação a que se juntavam frequentemente alguns banhistas.
Depois, no areal, procedia-se à separação do peixe capturado para ser leiloado publicamente, enquanto se iam contando as histórias da faina e aventuras no mar. Nos anos 60 do século XX, esta tradição foi ainda mais avivada, porque nesta aldeia de pescadores, o turismo começou a crescer de forma intensa, mantendo-se vivo até aos dias de hoje.
Ana Clara, jornalista do “Campeão” em Lisboa
Texto publicado na edição em papel do “Campeão” de 7 de Dezembro de 2023