O “Cantinho dos Reis” não é nada disso. É outra coisa. Claro que é um bom restaurante. Mas
bons restaurantes há muitos em Coimbra e não é disso que se cuida aqui. O “Cantinho dos
Reis” – cada vez mais o “Reis” – é outra coisa e a sua marca não é ser bom ou mau. O seu
perfil distintivo é ser diferente, é ser outra coisa, muito parecido com um restaurante
concorrido, é certo, mas muito mais do que isso. Come-se e bebe-se ali, do bom sempre,
muito vastas vezes. Mas aquele espaço não é um restaurante onde se convive, é uma sala de
convívio onde se come. São coisas diferentes. Muito diferentes. Para melhor.
Ali não é o Cantinho do Reis. É Reis do Cantinho. Restaurante e o Reis confundem-se de tal
maneira que, sendo dois, não deixam de ser o mesmo. Quem manda é o Reis e acabou. Você,
cliente, entra e julga que escolhe, mas só olha para o papel porque mal se apercebe já tem na
frente o que o Reis escolheu para si. Quer água? Ele dá-lhe a água mas põe-no a beber tinto.
Quer da Bairrada, já está a emborcar do Douro. Ía uma feijoada?, não vai coisa nenhuma
porque está a sair um grão de bico de que você, cliente, até não sabia que gostava tanto.
Senta-se ali? Se a mesa estiver vazia, talvez; mas se o Reis souber que ainda há-de vir fulano
e cicrano, você senta-se não ali mas ao lado daquele “meu amigo” que está noutra mesa e
acabam todos no paleio, a falar mal de tudo e mais alguma coisa. Com uma excepção, porque
ali, naquele Cantinho, ninguém pode dizer mal da Câmara de Coimbra. Claro, e com toda a
razão. Mas que razão? Simples: porque o Machado era o melhor do Executivo anterior e o
José Manuel Silva é o melhor do actual. Percebido? Ressalvada esta pequeníssima limitação
de ocasião, pode o cliente dizer mal de tudo, até porque ninguém o ouve. Na sala, a voz que
se escuta é a voz de comando. A voz do Reis. Ele refila, dá ordens e instruções, grita para a
cozinha, põe toalha e tira guardanapos. Ele é o motor, às vezes motor e roda. Põe tudo a
mexer. Quanto é? pergunta no final o cliente ao balcão. Vocês pensam que é a máquina
registadora que diz ao Reis quanto é ? Nada disso: é o Reis que diz à máquina registadora
quanto é que o cliente vai pagar. A única máquina que manda ali é mesmo o Reis. Tudo o
resto executa e bem. E ouve o Reis. Mas calados.
Muitos clientes? Nada disso. Ali não há clientes nenhuns. Ali só há amigos: uns de há muitos
anos, outros que ali entraram pela primeira vez há cinco minutos. Depois nunca mais deixam
de lá ir, nunca mais deixam de ser amigos e quando mais tarde voltarem já estão a ouvir o
Reis a perguntar “então por onde tem andado o meu amigo?”. Tem tudo registado naquela
cabeça. Sempre gostou do Manel Machado e sente-se como seu amigo de verdade. Mas,
segundo ele e com razão, o Machado até lhe devia pagar (estamos a falar de há uns anos
atrás) só para que ele aumentasse aquela esplanada que só dá beleza e movimento à praça.
Quanto mais obrigar o espaço a pagar taxas caras para raio. Amigos, amigos, mas esplanada à
parte.
Por aqui se vê que o Cantinho dos Reis são dois mas não passam de um apenas. Confundem-
se um no outro. É nesta simbiose, neste pele e carne, que o restaurante ganhou e consolidou
o ser diferente e é nesta diferença que reside a razão pela qual tanta gente o procura e
frequenta. Da forma mais diversificada possível, a ponto de se poder dizer esta
monstruosidade: juntam-se ali pessoas em grupos de um apenas, e pessoas com autocarros de
uma pessoa só. É o Reis e o Reis é assim. Ponto final.
O Cantinho dos Reis está aberto há 28 anos
Do Cova Funda ao Cantinho dos Reis
Para entender como e porque o Cantinho dos Reis foi fundado, temos de regressar alguns anos na história, na época em que José Reis mudou-se para a cidade universitária.
Natural de Portunhos, em Cantanhede, viu todos os seus colegas emigrarem para outros países. Por isso, quando completou 12 anos, decidiu fazer o mesmo: sair de sua terra natal (mesmo que a contragosto de seu pai).
“Eu fugi de casa em cima de uma camioneta de vinho. Um senhor chamado Peres, do Terreiro da Erva, foi buscar vinho ao meu pai. Como eu fiquei sem mãe, aos dois meses de idade, e, aos sete anos, sem a tia que me criou, tive que procurar a vida sozinho”, explica.
Assim, José Reis aproveitou a ida do senhor Peres a Portunhos para, no seu regresso a Coimbra, subir na camioneta e vir escondido para a cidade em que até hoje se encontra.
“No dia a seguir o meu pai veio me visitar. Ele viu que eu tinha partido e depois veio para apoiar”, completa.
Quando chegou ao Terreiro da Erva, passou a trabalhar com o senhor Peres. Apenas dois anos depois, Benito, um dos então proprietários do Restaurante Cova Funda (também localizado na Baixa), chamou José Reis para ingressar nesta outra casa dedicada à restauração.
“Fui para o Cova Funda em 1958, com 14 anos de idade, e saí de lá com 50 anos”, afirma. O proprietário conta que, ao longo destas décadas em que esteve no Restaurante de Benito, também conhecido como o Espanhol, fez “muita amizade”, com clientes que até hoje atende.
Após esse período a trabalhar no Cova Funda (chegou, inclusive, a ser um dos sócios), resolveu abrir o próprio estabelecimento. Por isso, depois do 50.º aniversário, José Reis deu início ao projecto, que foi motivado pelo facto de ter “duas filhas”.
O chefe da cozinha, Jorge Borges, o proprietário, José Reis, e o gerente, Sérgio Girão
Mudanças ao longo do tempo
Hoje, com 28 anos de existência, o Cantinho dos Reis tem muita história para contar e serve de exemplo sobre a importância do apoio familiar.
“Quando saí do Espanhol, contei com a colaboração da minha mulher, Maria do Carmo, e de um jovem, que hoje é meu genro e gerente da empresa, chamado Sérgio Girão”, revela.
José Reis, para além das partes boas, relembra, também, das mudanças e dificuldades que o comércio enfrentou. “Isso teria sido mais fácil se eu não fosse tão ambicioso, porque nós começamos com um cantinho e agora já é um ´cantão`”.
“Depois de estar aqui, já investi em três prédios para juntar à estrutura original”, completa. No início, havia apenas a parte da entrada principal (localizada no Terreiro da Erva). Posteriormente, foi adquirido um espaço para casas de banho, no segundo andar. Então, foi comprada uma casa ao lado do local original, onde foi feita mais uma sala para receber clientes.
Actualmente, José Reis está a finalizar obras numa parte da estrutura, que vão permitir a abertura de um espaço adaptado para pessoas com mobilidade reduzida. A sala será localizada na rua do Carmo, embora se conecte à estrutura original. A previsão, segundo o proprietário, é de que o local esteja pronto ainda este ano.
A Baixa de Coimbra
A Baixa de Coimbra enfrenta actualmente alguns problemas, como a diminuição de clientes, que resulta da falta de espaço para estacionar os veículos, da deslocação de lojas para os centros comerciais e de alguns outros factores.
José Reis, entretanto, afirma que o restaurante “não tem motivo para se queixar”. “Temos clientes muito fiéis, que fazem algum esforço para vir comer cá, porque o estacionamento não existe, por exemplo, mas eles muitas das vezes conseguem ultrapassar os obstáculos e vêm”, acrescenta.
No entanto, o proprietário nota a diferença entre os tempos antigos e actuais. “O Terreiro da Erva era uma zona onde viviam centenas de pessoas. Havia inclusive fábricas aqui, que empregavam muitas pessoas. Nesta zona tinha de tudo, desde barbeiro a sapateiro”.
Como conta José Reis, era um espaço com “muito movimento”. Agora, entretanto, há “menos residentes” e isso afecta “a vida do comércio” que por lá existe.
Hoje em dia, os principais clientes da casa são os estudantes, que frequentam o local com assiduidade, mas o público não se restringe a esse grupo. José Reis relembra que recebeu, também, inúmeras personalidades ao longo dos anos.
O restaurante anexou outros espaços a sua estrutura física original, até chegar ao tamanho que tem hoje
A família
José Reis não deixa de fazer referência a sua família, que foi um grande apoio no decorrer das décadas.
“A minha esposa sempre esteve ao meu lado e sempre trabalhou comigo. Estamos casados há 52 anos”, afirma. Actualmente, Maria do Carmo continua a ajudar com o restaurante, a exercer um trabalho “que não é pouco”.
O gerente da empresa e genro, Sérgio Girão, casado com a filha mais velha de José Reis, também foi e continua sendo uma grande ajuda.
A filha mais nova do proprietário, Virgínia Alves, também colabora com o estabelecimento.