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Tiago Nunes

Tv Fest – 1 milhão de euros?

9 de Abril 2020

Tiago Nunes

A Senhora Ministra da Cultura de Portugal e a RTP acabaram de anunciar a criação de um Festival de Música Portuguesa, com o objectivo de apoiar os artistas portugueses nesta fase de crise gerada pela Covid-19.

Neste «Tv Fest», como foi apelidado, aquelas entidades públicas irão investir um milhão de euros para pagar aos artistas e técnicos que participarão em concertos diários emitidos pelo canal 444 e pela RTP Play.
Segundo o Ministério da Cultura, «o objectivo [do Tv Fest] é criar uma corrente entre os músicos, entre os artistas».
A «cadeia» solidária de um milhão de euros do erário público irá ser assim ser encetada (pasme-se!) por mera recomendação de 4 músicos, aqueles que começarão por beneficiar daquele investimento público literalmente milionário. Os 4 músicos escolhidos pela Senhora Ministra e pela RTP foram Rita Guerra, Fernando Tordo, Marisa Liz e Ricardo Ribeiro. A lógica desta «corrente entre músicos», segundo a Senhora Ministra, é a seguinte: «a Rita Guerra escolhe o próximo, o próximo escolhe o próximo…», a fim de «criar uma cadeia entre os próprios artistas para fazer este festival na TV».
Ou seja, aparentemente, para a Senhora Ministra e para a RTP, os músicos / artistas portugueses resumem-se àqueles que estão associados à chamada «música ligeira», incluindo o fado.
Por que razão é que neste grupo de 4 magníficos não há representantes da chamada «música clássica», de «jazz» e de outros géneros musicais? E por que razão os artistas de teatro e de outras formas de arte não podem beneficiar igualmente de um apoio de 1 milhão do Estado português?
Quais terão sido os critérios de escolha destes 4 músicos que irão não só beneficiar deste apoio do Estado de 1 milhão de euros, mas também desencadeá-lo? Quem serão os amigos que eles irão escolher para dar continuidade à tal «corrente entre artistas» (seja lá o que isso for)?
Sublinhe-se que alguns destes 4 músicos (senão mesmo todos) têm até beneficiado de contratos chorudos com alguns canais de televisão, incluindo a RTP. A Rita Guerra, por exemplo, colaborou ao longo de meses no programa «A Máscara» da SIC. E a Marisa Liz tem beneficiado também em termos financeiros e de exposição pública através da sua participação em sucessivas edições do programa «The Voice Portugal», emitido pela RTP.
Este «Tv Fest», organizado «ad hoc» e sem quaisquer critérios credíveis, é revelador de uma enorme tacanhez, de uma incompreensível falta de visão e de um obsceno desrespeito por artistas e por músicos afectos a outras formas de arte e de música. Sublinhe-se que há muitos músicos e artistas, mormente os ligados à «música clássica» e a outros géneros artísticos, que nunca tiveram a sorte de beneficiar de contratos milionários com canais de televisão e que se debatem actualmente com graves dificuldades, porque viram todos os seus concertos ou actuações publicas cancelados devido à Covid-19.
A título de exemplo, refira-se os diversos músicos promovidos pela CulturXis (uma associação fundada por jovens músicos ligados à música clássica) que ainda muito recentemente protagonizaram um conjunto de concertos online, que contou com mais de 400 000 visualizações. É óbvio que a música clássica não vende, nem se adequa tanto à propaganda do regime como a chamada «música ligeira», representada por aqueles 4 músicos iluminados. Diga-se em abono da verdade que a probabilidade de estes artistas escolhidos pelo Estado português, através do MC e da RTP, virem a nomear para a tal «cadeia» solidária de 1 milhão de euros artistas de música clássica, que nem sequer conhecerão, é muito diminuta ou quase nula.
Em suma: o Estado português só está aparentemente empenhado em mitigar os efeitos financeiros adversos da Covid-19 nas carreiras de certos artistas, nomeadamente os afectos a um determinado género de música. É caso para perguntar: quais serão os critérios de equidade artística que movem estes organismos do Estado, o MC e a RTP, na gestão do dinheiro dos impostos pagos pelos portugueses?

(*) Pianista, presidente da Associação CulturXis, director do Ciclo de Concertos de Coimbra e professor de piano no Conservatório Regional de Artes do Montijo