1. Quando a juventude actual nasceu, nós, os idosos, já calcorreávamos este país há longos anos. O labor árduo e fecundo, em circunstâncias usualmente adversas e amargas, não impedia que nesta peregrinação terrena nos dessedentassemos nas fontes da vida, para enriquecer o conhecimento, consolidar a experiência, socorrer os que tombavam no caminho e ofertar o sacrifício no altar da família e da pátria. Na longa jornada, e em linguagem metafórica, morremos várias vezes, no fim da infância, da puerícia, da adolescência, da juventude e da idade de varão. Ou seja, vencemos o tempo e aqui estamos acumulando um capital humano que enriquece o país. Sejamos rurígenas ou urbanos, diplomados ou analfabetos, edificamos um tesouro de sabedoria: em experiência e pensamento, em sensibilidade e afecto, em generosidade, nobreza e polidez.
2. Portugal é um dos países mais envelhecidos do mundo. Significa que nós, os velhos, somos mais que os novos, em termos demográficos. Esta circunstância, que se concretizou em poucos anos, motivada essencialmente pela quebra acentuada da fecundidade e porque se morre cada vez mais de velhice, originou um sobressalto na sociedade. Em certos sectores instalou-se o pânico, e iniciaram a cruzada contra o abantesma da « peste grisalha», considerada mais grave que a pandemia Covid. Fala-se muito em discriminação racial ou da mulher, e muito pouco no idadismo, ou seja, na discriminação do idoso, infelizmente cada vez mais acentuada.
3. Esta escalada contra a « peste grisalha», felizmente não subscrita por muita gente, é ridícula, escandalosa e imbecil. Em primeiro lugar porque não há coincidência entre o envelhecimento cronológico e o envelhecimento psicobiológico, o que dificulta a definição de velhice. Afinal quando se inicia? Ouçamos Florbela Espanca, no soneto «Pior Velhice»: …tenho a pior velhice, a que é mais triste, aquela onde nem sequer existe lembrança de ter sido nova…outrora…». E a poetisa brasileira Cecília Meireles: «Já não se morre de velhice, nem de acidente, nem de doença, mas, Senhor, só de indiferença…». Na realidade, há gente em que o corpo vai abolorescendo mas lucila no espírito uma notável luminosidade e vigília. Muitas vezes com canície precoce e rosto rugoso, mas sem rugas na alma, porque mantém acesa a chama da esperança e da fé. Pelo contrário, há gente que exibe enorme robustez e vigor físico, e no entanto padece de obesidade mental.
Por outro lado, uma sociedade rapidamente envelhecida como a nossa (quando nasci jogava em 4.2.1, em metáfora futebolística – 4 filhos, 2 pais e 1 avô/avó -, e agora joga em 1.2.4) , não deve confrontar de forma alapoada e tremendamente injusta a « peste grisalha». É uma questão moral, mas também de inteligência. Dar-se ao luxo de colocar na prateleira e desperdiçar um capital humano muito rico em valores do espírito, é uma insensatez e uma perversidade. Na era do conhecimento em que vivemos , impõe-se não estigmatizar o idoso, mas conceber e fomentar reformas estruturais, tendo em vista a sua não exclusão. Infelizmente, esse é o problema, só um poder político inteligente e capaz consegue concretizar esse desiderato. Não é o caso actual.
4. De facto, é confrangedor o apoio social ao envelhecimento no nosso país. Portugal situa-se na cauda da Europa no tocante ao fomento de um envelhecimento activo e saudável. Trata mal os seus idosos. Só 12 em cada 100 idosos carenciados conseguem suporte financeiro em lares, entretanto cada vez mais degradados. É assustador o retrato físico e psicológico da maioria deles, muitos clandestinos. Tugúrios miseráveis onde são descartados e despejados seres humanos como farrapos sem préstimo, e alvo de um tratamento lazarento. Espantosamente sem cobertura pela tutela da saúde. Uma classe política sem talento, incompetente, hipócrita e desumana deixou envelhecer o país, e despreza o idoso. Porque na sua perspectiva mercantilista não produz, e porque quem repousa num lar não entra em Manifs e dá poucos votos. Visão aterradora. Quando corremos definitivamente com a mediocridade, a indigência ética e a barbárie, para que o idoso seja integrado e não excluído? Seja respeitado e devidamente cuidado, e não vilipendiado e maltratado, nomeadamente no intermúndio gafo da maioria dos lares, asilos e albergues? Quando acorda a consciência nacional?
(*) Professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Medicina de Coimbra