A agenda mediática é condicionada pelo interesse público, mas também pelas audiências, pelo que não é possível ignorar o tema do dia, mas é possível opinar em asserções e conclusões, sem manter uma novela que desgasta até ao próximo acontecimento que mobilize comunicadores e cidadãos.
O presidente da Federação Espanhola de Futebol teve uma atitude provocatória, que a emoção da vitória não justifica, desrespeitadora da liberdade individual, ao beijar na boca uma atleta da qual é entidade patronal e superior hierárquico, em espaço público, segurando-lhe a cabeça com as mãos, e nela se pendurando.
A formalidade e o respeito devidos à situação do espectáculo desportivo e à personagem que acabara de exercer a sua profissão com sucesso, não se compadecem com atitudes de macho latino, galã de encomenda ou prepotente abusador.
Pouco importa a suposição e a suspeição de enredo premeditado que conduziria a uma pretensa ligação afectiva entre os protagonistas, qual folhetim de amores escondidos e atracção fatal incontrolável de paixão e vida severina.
O que importa é que houve uma agressão sexual sem consentimento explícito, perpetrada por um responsável com abuso de poder, sem decoro perante altos dignitários do poder público e diante o mundo global espantado pela insolência.
Interpretações semânticas
A posteriori, os avanços e recuos nos factos complementares, as várias interpretações semânticas da expressão do afecto, as imagens contraditórias de complacência ou rejeição, não alteram o significado do acto em si, inaceitável pelo comportamento incivilizado e típico de despotismo do abusador, seja ou não predador.
Não se sabe, neste momento, qual o desenvolvimento da narrativa, e eventual surgimento de novos factos que conduzam a relações secretas, ínvias ou vidas perigosas.
O que se sabe, é que foi cometido um acto que configura um delito flagrante, pelo que o julgamento e penalização deverão seguir o seu curso, sem prejuízo do direito de defesa do agressor, sem transformar a vítima em lasciva concupiscente, sem “estava a pedi-las” ou “já eram namorados” como mote.
Não se transforma uma ilicitude e um crime de assédio sexual definido através de actos exibicionistas, formulação de propostas sexuais ou constrangimento a contactos de natureza sexual, numa análise da obsessão que leva a camuflar um crime menor com outro de grande monstruosidade, como no beijo da serpente.
Não se converta em fait-divers um acontecimento que não o deveria ser por ilegitimidade, não se equipare uma transgressão desrespeitadora da vontade própria individual à invasão da Ucrânia, não se massacre noticiosamente o cidadão e as famílias, que têm como problemas principais a prestação da casa, a educação dos filhos, a estabilidade laboral, a falta de coesão familiar.
Assuma o autor do beijo, o pedido de indulgência, o acto de contrição, a justificativa sem razão, a negação de falsos motivos como subterfúgio, as consequências da demissão de cargo, de funções e de remuneração, a relação afectiva se é que a há e, serenamente, a justiça concluirá o seu percurso de investigação, as ilações e lições, a pena sem pena.
(*) Médico