Coimbra  3 de Dezembro de 2023 | Director: Lino Vinhal

Semanário no Papel - Diário Online

 

António Devesa

Mais Ensino Artístico … a bem da liberdade

29 de Setembro 2023

A poucos dias de celebrar o dia mundial da música e a poucos meses de comemorar os 50 anos da revolução de 25 de abril de 1974, detenho-me a ponderar sobre os avanços e recuos que a nossa sociedade obteve, que quimeras se tornaram possibilidades e que sonhos supostamente alcançáveis se travestiram de utopia.

O avanço da sociedade não é de facto linear, com mudanças entre gerações e que apenas conseguimos melhor visualizar quando observamos à escala dos séculos.

O conceito de liberdade, também conceptualmente variável consoante o observador, é valor que já foi bem menor do que o atual, mas que também já foi maior. Seja à escala nacional seja analisando e comparando o que acontece em diferentes geografias, ela é amplamente variável. Também é comum que, onde já houve democracia e liberdade, tenha surgido retrocesso civilizacional com o regresso de regimes ditatoriais.

Mesmo nas democracias o coeficiente de liberdade é variável. Basta ver o controlo das massas que se pode fazer sem recurso a ações musculadas, controlando informação, controlando conteúdos, levando as pessoas a acreditar que tomam decisões em consciência… Quando efetivamente são convencidas por “comentadores”, chavões, senso-comum, publicidades várias, conteúdos visuais e áudio criando opinião e essa assunção consciente de concordância.

Infelizmente, na base, não esteve um verdadeiro confronto de ideias mas sim uma hora a ouvir um opinion maker (esta expressão inglesa diz tudo); não esteve um livro mas sim uma leitura de rede social cujo algoritmo apresenta à nossa frente o mesmo tipo de publicações, conteúdos que apresentam um gosto recalcado, de interesse repetido; não esteve uma sucessão de músicas representativas da nossa humanidade cultural mas sim uma repetição incessante de sempre as mesmas, dos mesmos estilos, dos mesmos acordes que nos fazem acreditar verdadeiramente que estas são as únicas músicas que gostamos.

Então esta é uma escolha verdadeiramente livre? Ou estaremos presos numa caverna de sombras?

O verdadeiro exercício da liberdade só pode advir do conhecimento, da educação humanista, da consciência do mundo, que por esta via nos permite efetuar verdadeiras escolhas, ter liberdade de escolha. A educação! Aquela área que abril nos deu tanto, e que agora está em perigo! A educação! Aquela que permitiu o avanço da humanidade!

Recuar nesse campo não me parece sensato. Avançar por aí parece-me, à luz das lições da história, muito mais sensato. Considerar um custo é simplesmente estúpido. Considerar um investimento é claramente inteligente.

Particularizando esta problemática ao caso da música, o ensino artístico pode contribuir nesta mitigação desta falta de liberdade não consciente da população, num combate gigantesco contra os fenómenos minimalistas, populistas repetitivos, que encerram estruturalmente os fenómenos musicais. Não há mal de gostar dessas músicas. Há contexto para tudo. O mal é de não gostar apenas porque se desconhece, porque não se aprendeu, porque não se cresceu em convivência com todo um mundo cultural.

Existem poucos conservatórios públicos em Portugal, compensados com a existência de escolas privadas com contratos de associação com o estado que ajudam a mitigar a dificuldade de chegar a todo o território.

Dar a oportunidade a todas as crianças de frequentarem o ensino artístico seria, em semelhança com outras dimensões do conhecimento, um exercício educativo promotor de liberdade, da felicidade, da compreensão do mundo. Seria realizar abril na dimensão artística assim como permitiu massificar o ensino regular com a escolaridade obrigatória (agora até aos 18 anos).

É utópica a realização a curto prazo, mas não o é a longo prazo, desde que paulatinamente se deem passos de alargamento da oferta de escolas artísticas que consiga chegar a todo o território, e nestes se possa proporcionar a mais crianças.

Dia mundial da música. Celebremo-lo como dia de liberdade.

(*) Director do Conservatório de Música de Coimbra