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Semanário no Papel - Diário Online

 

Hernâni Caniço

Filhos que não têm pão

1 de Abril 2022

É inevitável continuar a falar da guerra na Ucrânia, ainda que este facto possa cansar os leitores, sujeitos ao non-stop televisivo, que nos relata a destruição de edifícios e do património cultural, a separação de famílias, a eliminação de vidas como se fossem números.

Mas não é possível ignorar o contínuo massacre de um povo, a perda dos bens conquistados pelas famílias, a deslocação interna no País em fuga errante para um local transitório da morte à espreita, e a migração maciça de refugiados que inundam a Europa na tentativa de salvar os mais fragilizados e vulneráveis, particularmente idosos, crianças e seus cuidadores, à mercê das redes de tráfico de seres humanos.

Há sempre factores antecedentes e precipitantes que levam à guerra, como há sempre dificuldades para a paz, reais ou ilusórias por conveniência dos beligerantes, mas a invasão de um País soberano, que tem o direito de construir o seu destino, é um atentado à liberdade, à democracia, à regulação diplomática, à estabilidade dos povos.

E Putin e a sua oligarquia, qual novo czar na senda do imperador, é o responsável pelos crimes contra a Humanidade em prática na Ucrânia, tal como é o causador da fuga de 300.000 russos (à data presente) para outros Países, que não se revêm no genocídio em marcha, e são sujeitos a perseguição, a sevícias e a decisões judiciais sem culpa formada pelo regime ditatorial.

Não sou favorável à sua catalogação como portador de perturbação de saúde mental (classificado como psicopata), figura que geraria inimputabilidade e quiçá paraíso dourado, sem provas de Medicina Baseada na Evidência, e estranho que haja figuras públicas executivas em Coimbra, defensores até dos rigorosos preceitos científicos, que definam Putin como tal.

Putin é um decisor executor de um morticínio de inocentes, e como tal deve ser considerado, devendo ser julgado quando viável no Tribunal Internacional de Haia, sem verborreia porque fica bem nem estigmas para impressionar ou ter ascendência política. Acabam ambos por criar uma suspeição de doença e, como tal, podiam subordinar protecção.

É também um capitalista, que subverteu a ideologia bolchevique (que já então defendiam o direito à autodeterminação das Repúblicas), instaurando um capitalismo de Estado, e é um imperialista autocrata, o que nada tem a ver com perfil de doença, mas com um perfil de ditador.

A guerra traz todos os dias histórias e mais histórias de sofrimento, dor e morte, edifícios que são bens legítimos em ruínas pela devastação, episódios mais do que muitos de violação de direitos humanos, fugas sem destino, olhar perdido, dignidade conservada, procura de sossego e esperança no regresso.

Há idosos a quem foi retirado o direito do envelhecimento, há mulheres impedidas de exercer a sua função na sociedade limitando-as a cuidadoras, há filhos que não têm pão e a quem não se aplicam os direitos das crianças, há homens que combatem mas não produzem o seu saber, há hospitais, maternidades, teatros e habitações que são reduzidos a pó, há médicos, enfermeiros e outros trabalhadores da saúde que são vítimas e estão impedidos de prestar cuidados, há feridos sem condições para recuperação, há mortos sem saber porquê, há cadáveres nas ruas que mais parecem amontoados de resíduos e lixo e há valas comuns, cúmulo do apocalipse.

Dia a dia, há novas informações sobre conversações sem caminho, mais destruições de estruturas e vidas, mais resistência contra o invasor e atacante, mas temos de acreditar que também há esperança.

Há esperança de serem respeitados direitos substituindo a agressão, de haver predomínio do culto da humanização sobre a crueldade em curso, de os facínoras caírem do seu pedestal de poder autocrático, de o mundo não estar perdido.

(*) Médico