1. O país entrou na consulta abatido, enfezado, prostrado e envelhecido, com dificuldade na locomoção. Sentou-se à minha frente, tenso. De que se queixa?, perguntei. Vim à privada, respondeu, com dinheiro emprestado, por não ter vaga no SNS. Queixo-me de tudo, da cabeça aos pés. Durmo mal, cefaleias, tonturas, falta de ar, palpitações, gases, emagrecimento, fadiga extrema, mal estar geral. Além disso, sou apático ou agressivo, eufórico ou taciturno, insensível ou sentimental, racional ou irracional.
2. Deite-se aqui na marquesa para o observar. Grisalho, enrugado, esquálido, palidez facial, olhos encovados, mau hálito, péssima dentição, acentuada desnutrição, sem panículo adiposo, flacidez e hipotonia muscular, mãos calosas, tensão alta, pulso arrítmico, ralas e sibilos pulmonares (tabaco?).
3. Já sentado à minha frente inquiri porque se deixou chegar a um estado tão deplorável, lazarento e deprimente. É simples, doutor, respondeu crispado. Pergunte ao Marcelo, ao Costa e à cambada anedótica que nos governa. Tenho fome e não tenho posses para uma alimentação básica. Tenho frio, e não possuo agasalho nem habitação decente. Vou à escola, e fazem-me uma lavagem ao cérebro com as actuais modas delirantes. Vou à universidade, e dão-me um diploma para o desemprego, ou para a emigração, ou para um vencimento miserável. Se estou doente, o SNS está fechado. Vou à farmácia e não tenho dinheiro para a medicação. Se necessito de justiça, os tribunais estão encerrados, para gáudio dos corruptos. Vou a uma repartição pública e quase sou escorraçado. Contraio um empréstimo bancário, e a banca sangra-me. Não pago atempadamente o imposto, e o fisco esmaga-me com coimas obscenas. Preciso de me deslocar de forma económica, faltam comboios. Vou de férias quando posso, venho de lá depenado. Se não estou atento, burlam-me nas redes sociais. Se sou velho, descartam-me como lixo. Louvo Deus, Pátria e Família, sou patetamente cunhado de salazarista. Vou à igreja para orar pelo bem comum, sou apodado de beato antiquado e atrasado. Ligo a TV, e a sala fica pestilenta com tanto nojo e podridão. Critico a esquerda caviar e o wokismo, sou logo um fascista. Lanço um piropo inocente, sou um predador sexual. Vai ali um preto ou um imigrante, digo eu, ai que sou racista. Não gosto das cores do arco-íris, ai que sou homofóbico. Patético e caricato, rumo à idiotia. Transformaram-me num manicómio ambulante, numa nave de loucos, num país paranóico e mendigo.
4. Deixei o país desabafar, e respondi: a recuperação depende de si. Ou continua conformado a aguentar esse flagelo, e há o sério risco de sucumbir. Ou se insurge, reclama e protesta de forma vigorosa, e vai aparecer seguramente uma alternativa credível, competente e séria que ponha cobro a este descalabro assustador. Esta a minha receita. Espero que, pelo menos, nela medite. Até as maiorias ditatoriais e tribais se abatem. Porque destilam mediocridade, incompetência, intolerância e desumanidade.
(*) Professor Catedrático jubilado da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra