Neste País à beira-mar plantado, onde há quase 50 anos se fez uma revolução sem sangue, os torcionários do antigo regime ditatorial, em último estertor de prepotência, abastardaram-se de vingança ou transformaram-se em ratos de sarjeta à espreita de uma oportunidade, ensejo esse que não deram à resistência pela democracia.
Portugal tornou-se um exemplo de condução de um processo democrático, que passou por crises políticas e económicas, por revanchismos e retaliações, por resquícios de criminalidade ideológica. Mas onde a consolidação da liberdade, a concepção de direitos humanos e as prerrogativas do desenvolvimento tornaram estável o País de que nos orgulhamos e que permite às novas gerações que não são rascas, já não estão à rasca e vislumbram o futuro, assumir o desafio de esperança, a concretização da família, a hipótese de ser feliz.
Lá longe, mas próximo no mundo global, ameaçando tornar-se difuso e de risco planetário, um czar iniciou uma guerra, movido pela reconstrução de um império, transformando a guerra fria em massacre de inocentes e retirando todas as possibilidades para a paz, paulatinamente, sem se desviar do seu caminho sanguinário.
Diariamente, as imagens que nos chegam da guerra contra a Ucrânia (sabe-se lá até onde continuarão), revoltam-nos os espíritos, revolvem-nos os estômagos, acicatam a nossa ira, refreiam-nos a esperança de haver um mundo melhor.
Prédios destruídos pelos bombardeamentos, casas em ruínas, corpos soterrados que eram seres humanos, vidas inocentes perdidas sem perdão, execução de civis e militares, cidades fantasmas tipo far-west americano sem vida própria, mulheres violadas a quem retiraram a dignidade, crianças a viver sem pai e futuras órfãs, idosos sem direitos nem à vida nem à tranquilidade, animais que nem os deixam ser animais, automóveis que já o foram, corredores humanitários que não existem ou são adiados, “vida” em abrigos sem abrigo, sem pão, sem água e luz.
O terror está instalado, o temor vai-se agravando, um País é destruído na sua estrutura e reduzido a um monte de escombros, o valor da vida humana é desrespeitado e cai como um castelo de cartas, a economia mundial corre riscos em que os mais fragilizados (mais uma vez) serão os castigados, não se vislumbra solução para a humanidade e para a Humanidade, sem promessas e sem ilusão.
A teoria peregrina na qual a paz se consegue, desde que a Europa não apoie em armamento a Ucrânia, é tão ridícula como dramática, querendo deixar um povo a lutar sem meios de defesa alguns e a ser assassinado na sua terra, dando o corpo às balas, aos invasores e ao tirano, para o poder matar “mais e melhor”. Bombardear uma cidade, quando a visita anunciada do secretário-geral da ONU a essa cidade decorre, é uma manifestação de força provocatória e abjecta, ao arrepio do Direito Internacional, da diplomacia e do bom senso.
Voltando a Portugal, há um Partido pelo qual perdi o respeito. Nunca a ele pertencendo, a sua condição de contribuinte para a luta contra o fascismo deu-lhe crédito (merecido). Mas o seu sectarismo atroz e a sua visão de clã que envergonha a palavra “esquerda”, delapidando o seu património histórico antifascista, não me toldam o raciocínio, nem beneficia quem o pratica, e conduzi-lo-ão para o caixote do lixo da História, o que lamento, apesar de tudo.
Não tenho boa experiência, quanto à solidariedade do PCP. Por protestar contra a guerra colonial, em 22 de Outubro de 1973, fui preso após uma sessão da CDE (MDP), oposição democrática onde pontificavam muitos comunistas e outros democratas, em Almeirim, sendo eu colaborador de vários movimentos anti-fascistas, que incluía a esquerda revolucionária e o PCP, principal organizador desta sessão.
Foi-me negado apoio jurídico, com o argumento que não pertencia ao “Partido” (embora tivesse divulgado pelo Ribatejo abundante material de propaganda da CDE), tendo sido defendido em tribunal sumário pelo Dr. Martinho do Rosário (pro bono), ilustre causídico de Santarém, socialista, ao qual não tinha nenhuma ligação.
Por mais que seja santa, a guerra é a guerra, escorre sangue, o céu e a terra, diria Fausto. O sangue dos inocentes, invadidos pelo déspota putineiro desumano, seja em Bucha, Irpin, Mariupol, Kharkiv, Kherson ou tantas outras cidades que agora aprendemos o nome, sem saber o nome dos mártires que apenas ansiavam pela paz, cuja vida foi ceifada sem dó nem piedade, sem rebuço nem complacência, como mosca sem valor.
O céu e a terra que deixaram de existir para os ucranianos, resumindo-se a sua sobrevivência (quando persiste) ao inferno da guerra, aos entulho das suas casas, à emigração forçada, à miséria e à dor, vítimas da fome e do apocalipso, perpetrado por quem clama poder.
(*) Médico