Coube-nos a honra de proferir a lição inaugural de um Congresso Internacional Hisano-Luso-Iberoamericano sob a consigna “Sociedade Digital e Direito Civil”, que a 13 de Abril p.º p.º principiou em espaço virtual, sob a égide da Faculdade de Direito da Universidade de Granada e presidido pelo Decano, Prof. Perez Serrabona.
E para caracterizar a Sociedade Digital e a transumância dos dados pessoais, nada melhor do que o sugestivo escrito de Luís Fernando Veríssimo, que fomos desencantar algures.
Eis o cenário e o diálogo:
“Telefonista: Pizza Hot, boa noite!
— Cliente: Boa noite! Quero encomendar pizzas…
— Telefonista: Pode me dar o seu NIDN?
— Cliente: Sim, o meu número de identificação nacional é 6102-1993-8456-54632107.
— Telefonista: Obrigada, Sr. Lacerda. Seu endereço é Avenida Paes de Barros, 1988 – apto 52 B, e o número de seu telefone é 5494-2366, certo? O telefone do seu escritório da Licoln Seguros é o 5745-2302 e o seu celular é 9266-2566.
— Cliente: Como você conseguiu essas informações todas?
— Telefonista: Nós estamos ligados em rede ao Grande Sistema Central.
— Cliente: Ah, sim, é verdade! Eu queria encomendar duas pizzas, uma de quatro queijos e outra de calabresa…
— Telefonista: Talvez não seja uma boa ideia…
— Cliente: O quê?
— Telefonista: Consta na sua ficha médica que o Senhor sofre de hipertensão e tem a taxa de colesterol muito alta. Além disso, o seu seguro de vida proíbe categoricamente escolhas perigosas para a sua saúde.
— Cliente: É, você tem razão! O que você sugere?
— Telefonista: Por que o Senhor não experimenta a nossa pizza Superlight, com tofu e rabanetes? O Senhor vai adorar!
— Cliente: Como é que você sabe que eu vou adorar?
— Telefonista: O Senhor consultou o site “Recettes Gourmandes au Soja”, da Biblioteca Municipal, dia 15 de janeiro, às 4h27min, onde permaneceu conectado à rede durante 39 minutos. Daí a minha sugestão…
— Cliente: Ok, está bem! Mande-me duas pizzas tamanho família!
— Telefonista: É a escolha certa para o Senhor, sua esposa e seus 4 filhos, pode ter certeza.
— Cliente: Quanto é?
— Telefonista: São R$ 49,99.
— Cliente: Você quer o número do meu cartão de crédito?
— Telefonista: Lamento, mas o Senhor vai ter que pagar em dinheiro. O limite do seu cartão de crédito já foi ultrapassado.
— Cliente: Tudo bem, eu posso ir ao Multibanco sacar dinheiro antes que chegue a pizza.
— Telefonista: Duvido que consiga! O Senhor está com o saldo negativo no banco.
— Cliente: Meta-se com a sua vida! Mande-me as pizzas que eu arranjo o dinheiro… Quando é que entregam?
— Telefonista: Estamos um pouco atrasados, serão entregues em 45 minutos. Se o Senhor estiver com muita pressa pode vir buscá-las, se bem que transportar duas pizzas na moto não é aconselhável, além de ser perigoso…
— Cliente: Mas que história é essa? Como é que você sabe que eu vou de moto?
— Telefonista: Peço desculpas, mas reparei aqui que o Sr. não pagou as últimas prestações do carro e ele foi penhorado. Mas a sua moto está paga, e então pensei que fosse utilizá-la.
— Cliente: @#%/§@&?#>§/%#!!!!!!!!!!!!! (uma chuva de impropérios, de obscenidades irrompe no ar…)
— Telefonista: Gostaria de pedir ao Senhor para não me insultar… Não se esqueça de que o Senhor já foi condenado em julho de 2006 por desacato em público a um Agente Regional.
— Cliente: (Silêncio) (pairou um silêncio ensurdecedor…)
— Telefonista: Mais alguma coisa?
— Cliente: Não, é só isso… Não, espere… Não se esqueça dos 2 litros de Coca-Cola que constam na promoção.
— Telefonista: Senhor, o regulamento da nossa promoção, conforme citado no artigo 3095423/12, nos proíbe de vender bebidas com açúcar a pessoas diabéticas…”
Cai o pano de modo apressado…
Na realidade, o cruzamento de dados e o acesso num mundo que diz zelar pela preservação da privacidade e do mais, pode oferecer-nos quadro tão bizarro, tal a forma como andam por aí ao desbarato, a despeito das proclamadas leis de protecção, mormente o Regulamento Europeu da Protecção de Dados que veio a lume, na União Europeia, em 2016.
E não nos esqueçamos que os dados são, diz-se, o ouro do século XXI. E, no entanto, os seus titulares deles dispõem a troco de um simbólico desconto na compra de um quilo de bananas do Equador…
Está por fazer-se a pedagogia dos dados e a educação para a preservação de algo tão precioso que anda por aí ao Deus-dará!
E é facto que tais acções têm de principiar na Escola.
apDC –DIREITO DO CONSUMO – Coimbra