Chegados os Finados, a religião e a tradição convidam-nos ao reencontro com a morada final terrena dos nossos que já partiram. Em Portugal, a azáfama nas estradas em torno do 1 de Novembro é um bom indicador da importância que os portugueses dão a esta tradição. Os cemitérios tornam-se ponto de peregrinação familiar e de reencontro também entre vivos: lavam-se campas, orna-se o espaço com flores, evocam-se factos passados, enfeitam-se as almas com recordações e saudades. Passada esta época, os cemitérios retomam a serenidade que os caracteriza.
Em Bruxelas, o cemitério mais peculiar será talvez o de Uccle-Dieweg. Não obstante aí estarem sepultadas figuras relevantes da vida belga, o cemitério está abandonado desde 1958. A natureza tem vindo a apoderar-se do espaço, envolvendo as campas e criando um cenário que leva ao extremo a estética do romantismo. Reza a lenda que Tintim, a mais icónica personagem de Hergé, vai aí visitar o túmulo do seu criador por altura de Todos-os-Santos, o que será porventura um pretexto adicional para uma visita. Abandonados ou não, os cemitérios dispõem sempre de uma estatuária variada, ora imponente, ora humilde, mas invariavelmente bela. Em Bruxelas podemos encontrar no cemitério de Laeken, que data já do século XIII, uma das estátuas originais de “O Pensador”, de Auguste Rodin. Mesmo ao lado está a extraordinária Igreja de Nossa Senhora de Laeken. Mandada construir por decreto real de 1850 como mausoléu para a esposa do primeiro rei da Bélgica, a igreja alberga hoje na sua cripta os restos mortais dos membros da família real belga. Curiosamente, o sumptuoso mausoléu em estilo gótico veio substituir uma antiga igreja, bem mais modesta, que ali se situava. Aquando da demolição do antigo edifício, o altar-mor foi poupado à destruição e transferido para o centro do cemitério adjacente. Assim, pode dizer-se que o cemitério de Laeken acolhe também os restos mortais da antiga igreja.
Conotados no imaginário popular – e sobretudo infantil – com fantasmas e espíritos, os cemitérios estão longe de ser perspectivados como um ponto de visita por razões culturais. Porém, os cemitérios são mais do que locais de devoção aos nossos mais próximos já falecidos. São também, em grande medida, património: património escultórico, arquitectónico e histórico. Em Coimbra o cemitério da Conchada constitui disso mesmo um bom exemplo. No passado dia 5 de Outubro teve lugar uma visita orientada ao cemitério da Conchada, com o tema “Para Além das Pedras e do Ferro… Onde o Silêncio Conta Histórias Republicanas”. Os grandes vultos da história nacional e local também repousam nos nossos cemitérios e visitá-los é também visitar parte do nosso passado colectivo. Se pensar nos cemitérios como pontos culturais pode causar num primeiro momento alguma estranheza, a verdade é que o valor cultural dos cemitérios tem vindo a ser crescentemente reconhecido. No caso de Coimbra, o cemitério da Conchada encontra-se, segundo o sítio da internet da Câmara Municipal, em processo final de classificação pela Direcção-Geral do Património Cultural, atento o “valor histórico e patrimonial do edificado”. Este é um passo importante no reconhecimento do valor dos cemitérios e, espero, da sua preservação respeitosa. O pior que podia acontecer aos nossos cemitérios seria transformarem-se num ponto de visita de turistas frívolos à procura de mais uma fotografia para as redes sociais. Devemos antes reconhecer que os cemitérios são testemunho do passado e um espaço que convida à introspecção e reflexão sobre o nosso futuro, nesse encontro frontal com a finitude humana. Agora que o 1 de Novembro se aproxima, os cemitérios são também um ponto de encontro, entre vivos, no presente. Antes e acima de visitar um cemitério por razões culturais, este é o tempo de honrar os nossos queridos defuntos e a sua memória.
Em memória da minha querida avó Belmira.