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Semanário no Papel - Diário Online

 

Hernâni Caniço

A morte saiu à rua

28 de Maio 2022

Há futebol que é feito de VAR duvidoso, de fruta sem meta-dados, de fanatismo pintado, de sorriso angélico quando ganha e búfalo esbaforido quando perde, de traficâncias com comissões, de agressões que representam lesões, de ídolos cujo negócio são números, de transferências de muitos milhões, de salários de outros milhões, de primas-donas de pontapé na gramática, de acompanhantes de companhia de cifrões, de manipulação da verdade e corrupção, de chico-espertos e serventuários, de violência e irracionalidade.

Mas também há futebol de perfume irresistível, de profundidade no passe a rasgar, de beleza no movimento e triangulação, do golo espectacular que levanta multidões, da defesa arrojada em voo do pássaro, da táctica que é estratégia e conhecimento, de emoção e paixão matizadas de sofrimento, da onda de alegria e satisfação, de cor que é vida e dá vida à cor, das famílias que se sentem família, da percepção que o desportivismo e a solidariedade não são chavões, da promoção da igualdade de género.

Os homens e as mulheres, as crianças e os jovens, podem trazer este futebol sem saltos altos, mas que reflectem um grande salto na dignidade, na probidade e no humanismo. Infelizmente, por vezes, a morte atinge estes verdadeiros senhores do futebol e decerto chegará às senhoras do futebol.

A morte saiu à rua é uma canção de Zeca Afonso, dedicada ao pintor Dias Coelho, antifascista assassinado pela PIDE, “num dia assim, naquele lugar sem nome pra qualquer fim”, sendo que o “teu corpo pertence à terra que te abraçou”. Morreram dois homens do futebol, o médico Campos Coroa, que foi presidente das Associação Académica de Coimbra – Organismo Autónomo de Futebol, e o bancário Raul Pinho, que foi jogador e treinador de futebol.

Em 2005, organizei ajuda humanitária às vítimas do tsunami no sudeste asiático, através de organização que fundei em 1993 e a que presidi durante 23 anos. Equipas médicas e de enfermagem prestaram ajuda no Sri Lanka, em 17 campos de deslocados, abrangendo 3.915 famílias (14.314 pessoas), na região de Jaffna (zona de guerrilha tamil), onde foram desalojadas 13.652 famílias (48.729 pessoas, das quais 2.600 morreram, havendo 541 feridos e 540 desaparecidos).

Estava eu na mesa de apresentação da candidatura de Manuel Alegre a Presidente da República, no Hotel D. Inês, em Coimbra, a pensar nas dificuldades do voluntariado e da missão humanitária, quando o meu colega de curso Campos Coroa me veio chamar, encaminhou-me para uma mesa vazia, sem quaisquer comentários, e passou-me um generoso cheque para apoio a despesas que asseguravam a missão. Campos Coroa era um Ser Humano, atento à dor e ao sofrimento dos mais fragilizados, um verdadeiro homem solidário. Até sempre, Coroa!

Fui médico de família do Senhor Raul Pinho durante 22 anos, até à aposentação. Visitava-me de 3 em 3 meses, por motivo de doenças que fazem parte da vida das pessoas, cuja identificação fica reservada no âmbito do segredo profissional, que não prescreve.

No mês de Janeiro de cada ano, a meio de cada época futebolística, já lá vão mais de 12 anos, concluída a consulta, e aproveitando a relação de amizade estabelecida a partir da relação médico-doente, eu perguntava ao Raul quem iria vencer o campeonato de futebol na respectiva época, com a minha curiosidade interesseira de adepto.

Tive sempre a resposta exacta, quer me agradasse ou não, arrolada de um exaustivo argumentário técnico da sua experiência de treinador, resposta certeira, infalível, que me colocava alegre ou triste, consoante a minha preferência clubística. Já não tenho quem me dê mais respostas antecipadas sobre o vencedor, e eu não as sei dar. Até sempre, Raul!

Campos Coroa e Raul Pinho faziam parte do mundo do futebol com perfume e afeição, com elegância e sobriedade, com discernimento e fruição, com sapiência e humanismo, onde há poucos. E onde sobram outros.

(*) Médico