José Manuel de Sousa Vieira, Provedor da Santa Casa da Misericórdia (SCM) de Coimbra, está na instituição há mais de 20 anos, tendo começado como vogal da Mesa Administrativa, com responsabilidades na área da terceira idade. Foi com os Provedores Aníbal Pinto de Castro e Armando Lopes Porto que passou a vice-Provedor e, em 2017, foi eleito Provedor, estando agora no seu segundo mandato, que termina em 2024.
Campeão das Províncias [CP]: É certo afirmar que se não existissem as Misericórdias haveria muito mais fome em Portugal?
José Vieira [JV]: Permita-me destacar algumas informações importantes. Actualmente, existem 388 Misericórdias activas em todo o país e o sector social representa aproximadamente 6% do Produto Interno Bruto (PIB) nacional. Este número demonstra a relevância do sector e da actividade das Misericórdias não apenas do ponto de vista social, mas também para o desenvolvimento económico do país.
O trabalho desempenhado é de extrema sensibilidade e importância. Elas oferecem assistência a uma ampla gama de pessoas, muitas delas em situações de vulnerabilidade e necessidade. Além disso, é essencial reconhecer e louvar o esforço e a dedicação dos nossos quase 100 trabalhadores que contribuem para o funcionamento desta organização. Quando se fala em cerca de 100 trabalhadores, é importante notar que a nossa Misericórdia conta com aproximadamente 80 funcionários no seu quadro efectivo, além de um número adicional que presta serviços de forma eventual ou temporária.
[CP]: Como vai a nossa Misericórdia de Coimbra?
[JV]: A nossa Misericórdia tem enfrentado os desafios dos dias actuais com resiliência e determinação. Felizmente, temos conseguido lidar com as adversidades que os últimos quase três anos de pandemia e mais de um ano de guerra no leste europeu trouxeram, impactando directamente a vida diária dos nossos utentes, colaboradores e fornecedores, bem como a gestão diária da nossa Irmandade.
Um dos principais desafios que enfrentamos foi o aumento extraordinário dos custos em várias áreas, incluindo energia, alimentação, combustíveis e recursos humanos, entre outros. Essa pressão financeira significativa afectou as tesourarias das instituições sociais, incluindo a nossa. No entanto, temos trabalhado incansavelmente para estabelecer estratégias de gestão sólidas, a fim de cumprir todos os nossos compromissos.
A nossa prioridade continua a ser a prestação de serviços de qualidade aos nossos utentes e o apoio à comunidade.
[CP]: As Misericórdias estão a passar por sérias dificuldades?
[JV]: Os lamentos que se vão ouvindo e lendo são, infelizmente, verdadeiros. As Misericórdias prestam serviços a quase 200 mil utentes a nível nacional, empregam milhares de pessoas e possuem um vasto património, muito dele a carecer de manutenção, por isso, os compromissos são elevados e constantes. A instabilidade económico-social que se vive tem, por isso, claras repercussões na gestão destas organizações, pelo que muitas delas – e isso é público – têm tido a necessidade de alienar algum património para conseguir assegurar os compromissos.
No caso da Misericórdia de Coimbra, apenas um exemplo, o CATI – Centro de Apoio à Terceira Idade – está localizado nos pavilhões que costumavam ser o antigo albergue distrital e estamos aqui desde 1985. A Segurança Social é responsável pela conservação e manutenção desses edifícios. No entanto, têm falhado nessa tarefa.
A falta de manutenção é preocupante, pois afecta directamente os nossos utentes. A nossa preocupação é o apoio e cuidado aos nossos utentes, o que sem o conveniente apoio da Segurança Social, já que as famílias não o conseguem fazer, tem implicações financeiras significativas. Se precisarmos de fazer qualquer arranjo, ou até uma reparação do elevador, temos que solicitar autorização à Segurança Social e se eles não responderem a autorizar, somos forçados a agir por nossa conta.
Por exemplo, o elevador que o CATI tem já não é adequado às necessidades do dia a dia. Vai do rés-do-chão ao primeiro andar e não comporta duas cadeiras de rodas simultaneamente. As avarias são constantes. Numa das últimas avarias e nos vários pedidos à Segurança Social fomos informados que não tinham verba disponível para resolver o problema…
Convém referir que a intervenção custava cerca de 300 euros! Avançámos nós, mais uma vez. A Santa Casa da Misericórdia ao longo dos últimos anos suportou encargos com reparações no valor de cerca de um milhão e duzentos mil euros.
[CP]: Os apoios do Estado deixam muito a desejar?
[JV]: Muito e isso é algo que temos vindo a constatar ao longo do tempo. Quando o actual primeiro-ministro assumiu o cargo pela primeira vez ele prometeu publicamente, tanto às Misericórdias, que o apoio financeiro seria equivalente a 50% do custo do utente, até ao fim da legislatura. No entanto, a realidade actual é que esse apoio corresponde a pouco mais de 37%.
É evidente que ele mencionou que essa taxa seria alcançada até ao final da legislatura. Quando lá chegarmos esse custo estará desactualizado, pelo que terá que ser reavaliado dada a evolução do custo de vida.
Não queremos promessas vazias. O grande problema aqui é a confusão entre as responsabilidades da Segurança Social e das Misericórdias. As Misericórdias prestam um serviço que é, em primeiro lugar, uma responsabilidade do Estado.
Nós temos feito o nosso melhor para prestar serviços de qualidade aos nossos utentes. Por exemplo, temos médicos voluntários que prestam assistência aos utentes, prestando apoio médico. Também expandimos os serviços de enfermagem para funcionarem 24 horas por dia. Claro, isto tem custos, mas não recebemos apoio adicional por causa disso.
[CP]: A situação económica da SCM é sustentável?
[JV]: Felizmente, a situação está estabilizada, embora sintamos, como todos, os pesados efeitos da inflação e a necessidade de redefinir estratégias para continuarmos a ser sustentáveis. Estamos, naturalmente, preocupados com vários aspectos, tais como a crescente dificuldade das famílias em assegurarem o pagamento pontual da prestação de serviços em detrimento das suas necessidades básicas; a questão da gratuitidade das creches e as suas implicações na gestão operacional a longo prazo, bem como a indefinição jurídico-administrativa do Centro de Apoio à Terceira Idade.
Uma particularidade que possuímos é que não recusamos utentes. Seria legítimo fazer uma selecção com base no valor da mensalidade, mas nós acolhemos aqueles utentes que já procuraram outros lugares e ouviram que não havia vaga. Se existirem vagas disponíveis, tentamos adaptar a mensalidade para acomodar esses utentes.
O nosso objectivo principal é proporcionar um ambiente de cuidado e apoio digno para todos, independentemente da sua situação financeira. Para contextualizar, o custo médio de um utente a nível nacional é de 1.250 euros. Quando temos um utente com um rendimento mensal de 500 euros, ficamos satisfeitos porque o prejuízo é muito menor. Em resumo, a nossa prática é garantir que os utentes recebam os cuidados de que necessitam, independentemente da sua capacidade financeira.
[CP]: Fale-me da mudança de instalações dos serviços administrativos para Montes Claros.
[JV]: A mudança para as instalações da Congregação dos Dehonianos, em Montes Claros, surgiu como resultado de uma coincidência entre a necessidade de expansão da Misericórdia e a disponibilidade dessas instalações devido à ausência de vocações. Num espírito de parceria, foram negociados os termos da cedência do espaço. A transferência para essas instalações dos serviços administrativos ocorreu no início de 2022.
Embora o projecto inicial, que incluía uma creche, jardim de infância e residência para idosos, tenha falhado devido à falta de financiamento do PRR (Plano de Recuperação e Resiliência), a Mesa Administrativa da Misericórdia não desistiu. Reconhecendo a necessidade de alojamento na cidade para estudantes, decidiram converter um espaço em quartos para estudantes universitários. Além disso, a Misericórdia já oferecia outras camas na zona alta da cidade, perto do pólo 1.
No entanto, este não é o último projecto planeado para este espaço, que tem múltiplas possibilidades. Estão em estudo novas soluções para o desenvolvimento futuro do local.
A Misericórdia de Coimbra construiu uma residência universitária totalmente equipada, com 25 quartos individuais, cada um com casa de banho privativa, frigorifico, bem como áreas comuns – cozinha, sala de estar e estudo, acesso Wi-Fi, lavandaria, estacionamento e ainda um campo de futebol, que está pronta e disponível. Este espaço está localizado no centro da cidade, num ambiente tranquilo e rodeado de áreas verdes, aumentando a capacidade de apoio da Irmandade à comunidade académica. O valor da renda ronda os 450 euros. Para mais informações poderá contactar a SCM através do telefone +351 239 823 403 ou por email secretariado.adm@misericordiacoimbra.pt .
[CP]: Vem aí o Dia do Património das Misericórdias?
[JV]: Exactamente no dia 15 deste mês. Este é um dia de grande importância para as Misericórdias, pois oferece a oportunidade de expor o seu património de forma mais clara e transparente. Muitas vezes, há património valioso que permanece desconhecido do público em geral. Este evento ocorre em várias Misericórdias em todo o país. Este ano, a União das Misericórdias desafiou-nos a acolher este evento, e estamos muito entusiasmados.
A simplicidade e facilidade de acesso a estas apresentações são uma óptima oportunidade para o público em geral aprender mais sobre o património das Misericórdias, a sua história e até mesmo sobre os Caminhos de Santiago.
Entrevista: Lino Vinhal / Joana Alvim
Publicada na edição do “Campeão” em papel de quinta-feira, dia 7 de Setembro de 2023