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Entrevista: João Pinho revela o legado de Bissaya Barreto na cirurgia e medicina

13 de Agosto 2023 Jornal Campeão: Entrevista: João Pinho revela o legado de Bissaya Barreto na cirurgia e medicina

João Pinho é um historiador, investigador e empreendedor cultural, sendo autor de diversas monografias sobre várias freguesias. Durante o período de 2002 a 2008, actuou como investigador da Fundação Bissaya-Barreto e fez parte da Comissão Organizadora das Comemorações dos 50 anos dessa instituição. Recentemente, doutorou-se em Estudos Contemporâneos pela Universidade de Coimbra, com a tese “A actividade do médico e cirurgião Bissaya Barreto nos Hospitais da Universidade de Coimbra, 1911-1956: contributos para a História da Medicina e Cirurgia em Portugal”. Colaborador do Jornal Campeão das Províncias e autor de artigos para revistas e jornais científicos, João Pinho demonstra um forte compromisso com a divulgação do conhecimento histórico e cultural, enriquecendo assim a compreensão e apreciação da herança histórica da região de Coimbra.

Campeão das Províncias [CP]: Como surgiu o apetite por esta temática ligada a Bissaya Barreto?

João Pinho [JP]: Em primeiro lugar é importante destacar que sou descendente de colaboradores de Bissaya Barreto, especialmente o meu avô, o que me proporcionou um ambiente familiar onde pude, desde cedo, aprender muito sobre esse notável homem. Além disso, ao longo das unidades curriculares que precederam o doutoramento a ideia foi muito bem acolhida pelos orientadores, a Professora Ana Leonor Pereira e o Professor João Rui Pita. Eles mostraram grande sensibilidade à temática e compreenderam que o estudo da vida de Bissaya Barreto, sobretudo no âmbito médico e cirúrgico, representava uma lacuna a ser preenchida, apesar da sua notória obra na medicina social.

Inicialmente, o projecto tinha como enfoque a medicina social, mas com a evolução do trabalho percebemos que essa área já estava bem explorada, assim como os aspectos políticos relacionados. Foi nesse momento que surgiu a ideia de direccionar o estudo para a figura médica e cirúrgica de Bissaya Barreto, abrindo assim novas perspectivas de conhecimento sobre esse relevante médico e cirurgião.

[CP]: Qual a importância no seu tempo do Professor Bissaya Barreto?

[JP]: Bissaya Barreto é inquestionavelmente uma das grandes figuras de Portugal na época contemporânea. Ele despertou tanto simpatias quanto algumas inimizades. O prestígio e importância decorrem da sua habilidade em compreender o contexto e as necessidades do seu tempo. Bissaya Barreto foi um cirurgião de intensa actividade. Durante o período entre 1913 e 1944, representou cerca de 40% do volume operatório dos Hospitais da Universidade de Coimbra. Essa realização envolveu uma média de 730 operações anuais, o que era verdadeiramente notável considerando a falta de meios de comunicação e transporte naquela época.

Além de se destacar como médico e cirurgião, Bissaya Barreto foi uma figura multifacetada que também deixou a sua marca nas esferas política e empresarial. O seu grande legado inclui a concepção de uma obra de medicina social que permanece amplamente conhecida e conta com várias unidades em actividade até aos dias de hoje.

[CP]: Bissaya Barreto atribuiu grande importância terapêutica aos elementos (sol, ar, água e terra).

[JP]: Na verdade, na sua tese de doutoramento, em 1915, Bissaya Barreto aborda um conceito inovador na época, o da helioterapia. Além disso, não podemos esquecer a sua ligação formal à Maçonaria até 1913, o que trouxe uma influência marcante à sua obra. Podemos perceber essa marca em todos os espaços que ele criou, como as casas da criança, onde a árvore e a água têm papel de destaque. Mesmo que ele se tenha desligado formalmente da associação, o espírito maçónico sempre o acompanhou e manteve-se presente em toda a sua obra filantrópica.

Bissaya Barreto tinha uma visão muito actualizada, em linha com os avanços da época na Europa e no mundo. Ele viajou ao estrangeiro para conhecer sanatórios, por exemplo, e trouxe para a região Centro muitos dos ideais que desenvolveu. O seu ideário também tem um forte cunho republicano, com o fomento à instrução e assistência pública. Ele foi um verdadeiro inovador e precursor, dotado de grande capacidade empreendedora, pois somente assim seria possível realizar as suas grandiosas obras.

[CP]: Daquilo que investigou sobre Bissaya Barreto, acha que ele seria a favor da concentração hospitalar que existe hoje em Coimbra?

[JP]: Nunca, de forma alguma. Bissaya Barreto defendia a existência de duas unidades hospitalares, sendo uma dedicada à cirurgia avançada e outra destinada à formação e aprendizagem. Na verdade, essa ideia foi uma das causas de conflito com a própria Faculdade de Medicina. Se Bissaya Barreto estivesse vivo, certamente jamais permitiria tal situação. Ele era um defensor da descentralização, nunca da concentração de serviços hospitalares ou assistenciais. Isso fica evidente quando observamos a sua obra de medicina social, que não se limitou apenas a Coimbra. Ele estabeleceu diversas unidades assistenciais em várias localidades, como os hospitais Rovisco Pais, na Tocha e Lorvão, as casas da criança disseminadas pela região e os dispensários, preventórios como o de Penacova, e as colónias de férias em lugares como Penacova, Figueira da Foz e Vila Pouca da Beira. A sua lógica foi sempre a de descentralizar, jamais concentrar.

[CP]: Quanto tempo e que dificuldades encontrou nesta investigação?

[JP]: A tese possui cerca de 350 páginas e envolveu a consulta de 14 fundos manuscritos, várias publicações periódicas, 94 autores e um total de 153 referências bibliográficas. Para a pesquisa, cruzei informações provenientes dos boletins dos Hospitais da Universidade de Coimbra, embora a publicação desses boletins tenha sido suspensa em 1944 por razões desconhecidas. A descoberta mais relevante foi a existência dos livros do Conselho da Faculdade de Medicina, cuja documentação estava à guarda das bibliotecas das ciências da saúde. Combinando essa informação com outros arquivos, como o Arquivo Histórico Municipal de Coimbra e o acervo da Fundação Bissaya Barreto, pude estudar os registos desse órgão e descobrir a relação conflituosa entre Bissaya Barreto e a Faculdade de Medicina.

Esse conflito surge em dois momentos marcantes: em 1921 e 1924. Em 1921, após defender a sua tese de doutoramento, Bissaya Barreto entrou em conflito com Álvaro Matos, que o acusou de desviar doentes. Posteriormente, quando Bissaya Barreto lançou a sua obra de medicina social, o conflito entre ele e o Conselho da Faculdade de Medicina aumentou significativamente. A Faculdade passou a ver a Obra Social de Bissaya-Barreto como algo que fugia ao seu controlo e passou a vetar as propostas de Bissaya Barreto para a área cirúrgica.

A relação entre Bissaya Barreto e a Faculdade manteve-se conflituosa ao longo dos anos, principalmente devido ao crescimento e sucesso da sua obra de medicina social.

[CP]: A que outras conclusões chegou?

[JP]: Durante a minha pesquisa tive a oportunidade de entrevistar várias pessoas, incluindo médicos e cirurgiões da época de Bissaya Barreto. Percebi que muitos deles evitaram expor-se ou relacionar-se muito com a figura de Bissaya Barreto, devido à sua ligação ao Estado Novo.

Os médicos que privaram com ele, apesar de terem aprendido com Bissaya Barreto, preferiram afastar-se e criar uma lenda negra em torno da sua figura. Essa lenda negra, no entanto, não se sustenta quando olhamos para os dados reais, pois os boletins e agendas mostram que Bissaya Barreto realizou uma quantidade significativa de cirurgias, representando 40% do volume operatório dos Hospitais da Universidade de Coimbra entre 1913 e 1944.

Um dos pontos interessantes que a tese trouxe foi a descoberta dos conflitos entre Bissaya Barreto e a Faculdade de Medicina, o que foi recebido pelo júri com entusiasmo. Além disso, a tese também trouxe à tona o conceito inovador de descentralização da cirurgia. Essa abordagem territorializava a sua actividade cirúrgica, abrangendo toda a antiga província da Beira Litoral.

Outra reflexão provocada pela tese foi a comparação entre a realidade actual e a capacidade de Bissaya Barreto alcançar um alto volume de cirurgias na sua época, mesmo sem os recursos tecnológicos modernos. Essa comparação levantou, por exemplo, questões sobre o funcionamento do Serviço Nacional de Saúde na actualidade.

[CP]: Vai continuar na área da investigação histórica?

[JP]: O futuro é sempre uma incógnita. Quero muito aprofundar mais sobre Bissaya Barreto e sobre a sua obra, especialmente o conceito de descentralização da cirurgia. Infelizmente, os arquivos das Misericórdias, confrarias e arquivos municipais da nossa região não permitem fazer uma consulta válida, pois estão completamente desorganizados. Gostaria de perceber como funcionavam essas equipas locais de cirurgia e enfermagem, seria um complemento ao trabalho já realizado. Penso que continuarei ligado à investigação. A história local e regional sempre me fascinou e não pretendo desligar-me dela.

Entrevista: Luís Santos / Joana Alvim

Publicada na edição do “Campeão” em papel de quinta-feira, dia 10 de Agosto de 2023