Fausto Carvalho é reconhecido como um dos grandes mestres de judo em Portugal, detendo o 9.º Dan nesta arte marcial. Ele faz parte de um selecto grupo de apenas três mestres com a mais alta graduação no judo nacional, juntamente com Bastos Nunes e Costa Matos. A sua paixão pelo judo começou aos 15 anos de idade e desde então ele nunca mais parou de praticar. Além das suas conquistas no judo, Fausto Carvalho é um nome importante na Associação Cristã da Mocidade (ACM), uma instituição com um histórico significativo e uma missão que vai além do desporto que celebrou recentemente o seu 105.º aniversário, onde exerce o cargo de presidente.
Campeão das Províncias CP: Fale-nos da Associação Cristã da Mocidade.
Fausto Carvalho FC: É, desde há muitos anos, a menina dos meus olhos. A ACM foi fundada como resultado do desenvolvimento de um movimento global e mundial relacionado com o movimento acemista. Teve muito a ver com o grupo de académicos. A Associação Cristã dos Estudantes (ACE), na altura, não era ACM, tornou-se assim devido à revisão dos estatutos aprovados em 1959. Esse grupo de académicos foi de facto o embrião da ACE. E foi também a filial do grupo dos Académicos Mundiais, filial em Coimbra. Esses grupos académicos eram compostos por professores intelectuais com uma forte vivência universitária. Nesse grupo estavam figuras ilustres como Quintanilha e muitos outros. A ACM foi também, de certa forma, um ponto importante e relevante no contexto da vivência política e social do século 20, pois foi criada em 1918, num período com vários acontecimentos que marcaram essa época, desde o comunismo na Rússia até o fenómeno de Fátima. Nessa altura, o final da Primeira Guerra Mundial, a ACM também teve alguma influência indirecta no apoio a personalidades e pessoas envolvidas. A parte desportiva aconteceu, a génese da ACM é formar boas pessoas, incutir valores e humanidade. As personalidades ligadas ao acto inicial da fundação da ACM eram pessoas de grande intelectualidade, alguns deles praticantes desportivos, mas acidentalmente, não foi um factor determinante. Depois é que surgiram as secções, com pessoas interessadas na criação e desenvolvimento de algumas actividades, inclusivamente algumas que foram pioneiras em Coimbra e a nível nacional. Actualmente a Associação tem cerca de 700 praticantes divididos pelas várias secções.
CP: O edifício da ACM não foi pensado inicialmente para o grande pólo desportivo que se viria a tornar?
FC: Alguma coisa diferente disso estaria subjacente à criação. Não é por acaso que chamaram para projectar a sede da ACM o Raul Lino, que já era um renomado arquitecto na época, com um nome e um trabalho reconhecidos, e que ainda hoje é uma figura marcante na área da arquitectura. Ele é quem efectivamente fez o projecto do edifício. Julgo que todo esse processo de Constituição se baseia num movimento muito ligado às filosofias e princípios humanistas. Portanto, eram pessoas que tinham essa preocupação e de certa forma desencadearam um processo político-social, se quisermos chamá-lo assim, mas mais social e relacionado com um determinado tipo de visão política e imposição de ideias, etc. Essas pessoas eram defensoras dos princípios da liberdade e igualdade, numa altura em que na Europa predominavam outros valores políticos. Na ACM realizaram-se reuniões de pessoas ligadas às forças armadas que se opunham às ideias que começavam a proliferar e também ocorreram encontros da ‘Seara Nova’, naquela época uma estrutura de comunicação social que de certa forma se opunha veementemente a essas ideias que poderiam ser consideradas perigosas e que se espalhavam pela Europa, e que, infelizmente, levaram a maus resultados nos anos seguintes. E não podemos esquecer que quando a ACM foi constituída, a primeira biblioteca de acesso público em Coimbra foi instalada lá. Havia apenas a biblioteca municipal, que era universitária e tinha acesso limitado. Portanto, a ACM abriu as portas para a literatura, a educação e a cultura de forma ampla e acessível.
CP: A ACM não tendo sido criada com um propósito desportivo, quando se dedicou ao desporto também o fez de uma forma ecléctica. Quantas secções tem hoje a ACM?
FC: Tem 25 secções. Nós estamos sempre abertos a todas as situações. Temos inclusive protocolos com instituições de solidariedade social, como a Santa Casa da Misericórdia e outras semelhantes, onde acolhemos jovens para colaborar na sua formação e, se possível, também na sua educação. A questão da formação do ser humano, do indivíduo, nunca deixou de ser uma preocupação. Está relacionada com o que mencionámos anteriormente, onde falei sobre os princípios de liberdade, igualdade e busca pela aplicação desses valores na prática. No entanto, isso teve consequências, especialmente com o surgimento da ditadura. A ACM sofreu intensamente com essa forma de estar na sociedade e nas organizações. Viveu períodos difíceis nos anos 30 e principalmente nos anos 40. Apenas foram superados de certa forma nos anos 50, e depois houve uma libertação total após o 25 de Abril. Portanto, é um histórico que se justifica com base nesses princípios, valores e no que é, talvez, o ADN da ACM nos dias de hoje e que é o grande património da ACM.
CP: A ACM no âmbito desportivo tem tido resultados invulgares, aliás o Fausto Carvalho é exemplo disso. Não é comum alguém praticar judo durante 60 anos?
FC: Mais ainda, porque nunca deixei de desenvolver as minhas actividades profissionais ao mais alto nível. Isso custou-me alguma coisa. Estive muitos anos a dormir 4 horas por noite, porque para mim, a responsabilidade profissional é a base, é uma base fundamental e um princípio fundamental. Depois de sermos atletas competidores, passamos a ser praticantes em geral, eventualmente dirigentes e até mesmo árbitros, e eu passei por tudo isso sem prejudicar as minhas actividades profissionais.
Posso dizer-lhe que quando estive no estrangeiro, nunca deixei de praticar judo. Dedicava todo o tempo disponível aos treinos e aos trabalhos como atleta, o que justifica o meu percurso desportivo. A minha graduação é a mais alta, somos apenas 3 elementos em Portugal.
Começámos por conta própria. Aqui em Coimbra tínhamos um professor, um mestre que vinha aos fins-de -semana, mas nem sempre podíamos pagar a sua viagem e estadia. Então, íamos estudando livros e tentando recuperar os ensinamentos que o mestre nos transmitia. Nessa altura, decidi que se quisesse continuar a evoluir na modalidade, teria que sair do país. Passei cerca de 30 anos a fazer estágios em França e Espanha, principalmente em França, ocupando as minhas férias. Sacrifiquei muitas coisas e muitas pessoas próximas.
CP: Não será fácil gerir uma Instituição como a ACM?
FC: Exige muita dedicação para conseguirmos cumprir com o desenvolvimento das actividades e da vida da instituição, não apenas em relação às actividades em si, mas também à estrutura e sustentabilidade. São os pilares desta organização que requerem muito esforço e trabalho. Por vezes, as quotas não são suficientes e enfrentamos grandes dificuldades. É por isso que temos alguns espaços arrendados. Aproveitando a oportunidade, gostaria de mencionar o campo em Foz de Arouce. É um espaço extraordinário, com uma natureza exuberante.
Em 2012, houve uma tempestade que afectou a área, talvez se lembre disso. Passou exactamente pelo campo e derrubou 130 árvores de grande porte. Algumas dessas árvores caíram sobre as instalações dos refeitórios, cozinhas e camaratas, o que exigiu um enorme esforço para recuperar tudo isso. Apenas as quotas seriam insuficientes. Relativamente à reabilitação da sede recebemos apoio por parte do município. Foi um processo em duas fases. Na primeira fase, recebemos um apoio de cerca de 100.000 euros e, na segunda fase, cerca de 70.000 euros. Agora, esperamos que para o suporte estrutural que resta, ou seja, o telhado, possamos conseguir apoio de uma candidatura já apresentada ao actual elenco municipal.
CP: O Campo de Foz do Arouce deu robustez à ACM?
FC: Este campo foi como que uma doação do Conde de Foz de Arouce e sim, deu robustez à Associação porque, no final das contas, foi um acto que se enquadra na filosofia da ACM. Foi importante, sabe, logo depois aconteceu aquele período difícil na vida nacional, com o regresso dos portugueses das ex-colónias. Então, ali foi criada uma estrutura de apoio para esses retornados, como eram chamados, e eles ficaram lá durante meses. Agora, mais recentemente, também em Foz do Arouce, acolhemos um grupo de refugiados que vieram da Ucrânia.
CP: Há quantos anos já está na direcção?
FC: 13 anos! Tenho reflectido muito sobre isto. E há uma coisa importante: quando assumi a direcção da ACM a situação económica e financeira não estava fácil. Mas conseguimos superar com uma gestão rigorosa. Mas com a pandemia surgiu uma situação, pelo inesperado, bastante difícil. E nós, de certa forma, fomos incentivados pelas entidades bancárias a subscrever um empréstimo. Isso ajudou-nos, porque garantimos que nenhum funcionário fosse prejudicado pelo processo relacionado à pandemia, como muitos foram. Sempre assegurámos os compromissos com o pessoal de apoio. E agora, neste momento, a minha questão é: não quero deixar compromissos bancários para outra pessoa. Eu e os meus colegas da direcção temos que continuar, se for possível. Um dia irei deixar a função, mas com os compromissos assumidos satisfeitos. Há corpos directivos que marcaram a instituição, isso é verdade. Mas, como dizem, ninguém é insubstituível.
Lino Vinhal/ Joana Alvim