Coimbra  3 de Dezembro de 2023 | Director: Lino Vinhal

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Entrevista a Natália Cardoso: um olhar profundo sobre o Apoio à Vítima em Coimbra

29 de Outubro 2023 Jornal Campeão: Entrevista a Natália Cardoso: um olhar profundo sobre o Apoio à Vítima em Coimbra

A Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) tem sido uma força vital no auxílio às vítimas de crime e violência ao longo de mais de três décadas. No ano de 2022, a instituição desempenhou um papel crucial num total de 16.824 processos de apoio, marcando um aumento significativo de 7,7% em relação ao ano anterior. Uma das pedras angulares desta missão humanitária é o papel desempenhado pelos Gabinetes de Apoio à Vítima (GAV). Em Coimbra, a gestão do Gabinete de Apoio à Vítima é conduzida por Natália Cardoso, uma profissional de destaque que demonstra um compromisso inabalável com a causa.

 

Campeão das Províncias [CP]: O que é a APAV?

Natália Cardoso [NC]: A APAV é uma organização não governamental de solidariedade social, fundada em 1990 em Lisboa, com o objectivo de auxiliar vítimas de crime em todo o país. Actualmente, conta com 75 serviços de proximidade, incluindo gabinetes, uma linha de apoio à vítima e uma linha de Internet segura, além de equipas móveis.

A APAV oferece apoio gratuito, baseado na confidencialidade e confiança mútua, através de três tipos de ajuda: psicológica, social e jurídica. A missão da APAV é apoiar vítimas de crime, ajudando-as a enfrentar as dificuldades decorrentes dessa situação.

Além disso, a APAV defende os interesses das vítimas perante as estruturas estatais e outras organizações, procurando garantir uma resposta adequada para quem necessita de apoio após ter sido vítima de crime.

 

 

[CP]: Que tipo de situações vos chegam?

[NC]: A nossa missão, como referi anteriormente, é apoiar todas as pessoas que são vítimas de crime. No entanto, desde o início, não apenas aqui em Coimbra, mas a nível nacional, a maioria das pessoas que nos procura são mulheres vítimas de violência conjugal. Por isso, é natural que tenhamos uma atenção especial para estas situações, as quais também têm contornos um pouco mais complexos do que outros tipos de criminalidade. Todos os crimes podem ser graves e ter um impacto mais ou menos severo na vida da pessoa. Sabemos que os casos de violência doméstica acabam por ser mais complexos, porque envolvem não só a própria vítima, mas também todos os membros da família, elementos da sociedade e até outras estruturas comunitárias.

 

 

[CP]: É possível traçar perfis?

[NC]: Em termos de perfis, é mais simples quando nos referimos a estatísticas, ou seja, ao analisarmos os números das pessoas que nos contactam, incluindo a faixa etária e o nível de escolaridade. É unanime que a violência doméstica é transversal, ou seja, qualquer pessoa pode ser vítima ou agressora. Podem ter diferentes estatutos socioeconómicos, diversos níveis de escolaridade, residir em zonas rurais ou urbanas, ter qualquer profissão e até ocupar posições destacadas na sociedade.

 

[CP]: As autoridades estão preparadas para lidar com estas vítimas?

[NC]: As autoridades estão mais preparadas hoje do que há algumas décadas. Existe formação específica na PSP e na GNR para lidar com estas situações, especialmente em casos de violência doméstica. No entanto, ainda enfrentamos desafios, como a necessidade de formação contínua de novos profissionais. Lidar com a frustração é outro obstáculo, especialmente quando não podemos oferecer toda a ajuda necessária devido a recursos limitados. Algumas vítimas podem retornar ao convívio com a pessoa agressora, o que pode ser frustrante para nós.

 

[CP]: Por norma, é a vítima que tem de abandonar a sua residência, faz sentido esta realidade?

[NC]: Infelizmente, isso ainda ocorre com frequência. A legislação actual facilita aos magistrados a aplicação de medidas de afastamento da pessoa agressora da residência, garantindo a segurança da vítima. No entanto, nem sempre os magistrados encontram elementos suficientes para fundamentar a aplicação dessas medidas. Por vezes, a situação de perigo é tão iminente que é aconselhável que a vítima se afaste temporariamente, mesmo antes da aplicação das medidas. É importante garantir a segurança da vítima, especialmente quando há filhos menores envolvidos. Após a aplicação das medidas, a vítima poderá regressar à sua casa com segurança. Em algumas situações, o tempo de espera enquanto não são aplicadas medidas pode representar um risco de vida, sendo crucial agir prontamente.

 

[CP]: É nestas situações que as vítimas são enviadas para as Casas Abrigo?

[NC]: Existem abrigos na rede nacional de apoio a vítimas de violência doméstica, gerida pela Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género. Estes abrigos oferecem dois tipos de resposta: uma de emergência, para vítimas que necessitam de um local seguro imediatamente, e outra de longa duração, onde as vítimas podem permanecer de 6 meses a um ano para reestruturar as suas vidas. A estadia depende das circunstâncias de cada situação concreta. O objectivo é ajudar as vítimas a recuperarem as suas vidas e a retomarem a autonomia o mais rápido possível, evitando uma permanência prolongada nos abrigos.

 

[CP]: E quando também há vítimas menores? Quem deve intervir?

[NC]: Quando lidamos com vítimas crianças e jovens, coordenamos a acção com a Comissão de Protecção de Crianças e Jovens ou os tribunais, dependendo da situação. Às vezes, a própria Comissão encaminha-nos casos em que percebem a necessidade de apoio adicional para a vítima de violência doméstica, além da criança ou jovem que estão a acompanhar. Mantemos essa ligação estreita com diversas entidades, como a Comissão, os tribunais e a segurança social, assim como outras estruturas que prestam auxílio às crianças e jovens.

 

[CP]: Segundo o relatório da APAV, Crimes Sexuais contra crianças e jovens representam 4,9% das denuncias.

[NC]: Notamos um aumento de pedidos de ajuda relativamente a casos de violência sexual nos últimos anos, tanto em crianças como em adultos. No caso dos adultos muitas dessas situações envolvem importunação sexual, que são contactos sexuais não consentidos, incluindo toques indesejados ou contactos sexualizados não consentidos em vários contextos. Além disso, também houve um aumento nos casos de violação. Percebemos que esses tipos de violência sexual são frequentemente subnotificados, devido ao tabu em torno da sexualidade. O procedimento de apoio à vítima varia de acordo com a natureza do crime e o impacto da vitimação. É realizada uma avaliação das necessidades da vítima para oferecer o apoio adequado. Em Coimbra contamos com uma técnica especializada para apoio a crianças e jovens vítimas de violência sexual, no âmbito do “Projecto CARE”. Este projecto é actualmente financiado pela Segurança Socia e permite os recursos necessários para a técnica se deslocar até onde as pessoas estão, proporcionando um tipo de apoio de maior proximidade, o que não conseguimos providenciar noutras situações devido à falta de recursos. Além do suporte psicológico, ela acompanha o processo judicial e mantém contacto com as autoridades, incluindo a polícia judiciária.

 

[CP]: E com os idosos? Que tipo de crimes são mais comuns?

[NC]: Geralmente, é um familiar, vizinho ou alguém da rede institucional que entra em contacto porque suspeita de alguma situação que a pessoa idosa esteja a viver. A situação mais comum é a pessoa idosa ser vítima de violência física, financeira ou emocional por parte dos seus cuidadores, que geralmente são filhos ou outros familiares. Existem também algumas situações a nível institucional, mas em menor proporção. Portanto, a maioria dos casos que nos são comunicados são relativos a pessoas idosas que são vítimas de abuso por parte dos seus próprios familiares, como neto/as, filho/as ou noras ou genros, ou seja, pessoas que fazem parte do círculo de cuidado da pessoa idosa, mas que, infelizmente, não estão a fornecer os cuidados necessários. Isso pode envolver negligência, agressão, ameaças ou apropriação indevida dos bens da pessoa idosa, colocando-as em uma situação de grande vulnerabilidade.

 

[CP]: O perigo muitas vezes mora na nossa casa, é verdade?

[NC]: Essa foi das primeiras coisas que aprendi quando comecei a trabalhar na APAV. Na época, eu ainda era estudante de direito e acreditava que os pedidos de ajuda à APAV seriam situações de furtos, crimes na rua, assédio ou até mesmo crimes sexuais, mas geralmente perpetrados por estranhos. No entanto, na realidade, a maioria dos crimes que nos são comunicados são crimes cometidos por pessoas muito próximas da vítima.

 

[CP]: O que devemos fazer se formos vítimas?

[NC]: É crucial dar o primeiro passo ao falar com um profissional, pode falar directamente com a APAV ou com outro profissional, por exemplo com o/a médico/a de família, enfermeiro/as, assistentes sociais, que poderão encaminhar para a APAV ou para as autoridades policiais. Caso a vítima prefira falar com a APAV inicialmente de forma anónima por telefone ou e-mail, é uma opção válida, embora as informações e apoios possam ser mais limitados em comparação com um contacto em que a vítima se identifica. Muitas vezes as pessoas que nos contactam têm duvidas sobre se o que se está a passar com elas é crime, pelo que é importante que obtenham informação e orientações para estabelecermos um plano de apoio e protecção.

 

[CP]: A situação em Coimbra, como está?

[NC]: Os dados referentes a 2023 são ainda muito preliminares. Até Agosto, observámos um aumento significativo nos pedidos de apoio, mas em Setembro, houve uma pequena redução. A média dos últimos anos tem sido de aproximadamente 600 pessoas que nos procuram anualmente. Este ano, a nossa estimativa aponta para um número semelhante, podendo ser mais ou menos, dependendo dos próximos meses. É positivo que haja menos casos, mas o nosso objectivo é que todas as vítimas encontrem apoio, superando o receio ou vergonha que muitas vezes as impede de recorrer às estruturas de ajuda.

Entrevista: Luís Santos/ Joana Alvim

Publicada na edição do “Campeão” em papel de quinta-feira, dia 26 de Outubro de 2023