Ana Figueiredo e Marco Carvalho representam a Saúde em Português na Comissão de Acompanhamento da Rede Regional do Centro de Apoio e Protecção a Vítimas de Tráfico de Seres Humanos
A Saúde em Português é uma Organização Não Governamental (ONG) com sede em Coimbra, que completou 30 anos na passada segunda-feira. Um dos seus campos de acção tem sido, desde 2010, o apoio e a protecção a vítimas de tráfico de seres humanos, quer acompanhando os casos que surgem, quer acolhendo quem sofreu este crime.
Ana Figueiredo e Marco Carvalho, representantes da Saúde em Português na Comissão de Acompanhamento da Rede Regional do Centro de Apoio e Protecção a Vítimas de Tráfico de Seres Humanos, deram conta do trabalho que realizam à Rádio Regional do Centro (96.2 FM) e ao “Campeão”, durante a conversa matinal de segunda-feira com Luís Santarino.
“Se hoje este é ainda um tema desconhecido para alguns, ou achamos que não se passa aqui, associando o tráfico de seres humanos a além fronteiras, a realidade é que existe também um tráfico interno e a vítima pode ser uma pessoa que nunca saiu do sítio onde viveu, que está ali a ser explorada pela família”, explicaram.
A Rede de Apoio e Protecção a Vítimas de Tráfico de Seres Humanos integra cinco entidades: Associação para o Planeamento da Família (que tem o centro de acolhimento dedicado a mulheres), a Saúde em Português, a Associação Florinhas do Vouga, a AMI e a Mulher Século XXI. Esta rede tem como objectivo criar sinergias para promover o apoio e assistir vítimas de tráfico.
Na zona de Coimbra existe desde 2013 um centro de acolhimento e protecção para homens vítimas de tráfico humano, com a Saúde em Português a gerir também esta resposta. Já foram acolhidas 120 pessoas, uma das quais um menor de idade de um país sul americanos que foi atraído para Portugal para ser futebolista, num clube de uma divisão distrital, e cuja família chegou a pagar 20 mil euros a um angariador.
Conforme explicam Ana Figueiredo e Marco Carvalho, “há diferentes contextos de exploração e cada vítima tem as suas necessidades, pois, entre outros aspectos, podem apresentar debilidades cognitivas, problemas de saúde mental, dependências”. No centro de acolhimento são trabalhados os projectos de vida e as competências no sentido de reintegrar as pessoas na sociedade.
O crime de tráfico de pessoas faz parte do Código Penal e visa quem se aproveita, quem recrute, quem aloje uma pessoa, para um determinado fim e se aproveita da sua vulnerabilidade. “O ser humano tem uma grande capacidade de perceber como pode explorar o outro e estamos a falar da terceira actividade ilícita mais lucrativa do mundo, sendo a primeira o tráfico de armas e a segunda o tráfico de droga”, refere Ana Figueiredo.
Exploração sexual, laboral e doméstica
“As pessoas podem ser exploradas a nível sexual, a nível laboral – e falamos de construção civil, hotelaria, restauração, do desporto, da agricultura, da pastorícia – e também a nível da servidão doméstica, que acaba por ser mais invisível porque são pessoas que estão 24 sobre 24 horas fechadas numa casa e é difícil de detectar se alguém não denunciar a situação”, acrescenta.
Existe ainda outro tipo de exploração, que é a mendicidade forçada. “Vemos na rua uma pessoa a pedir, oferecemos comida e a pessoa ainda reclama e é mal agradecida, mas é obrigada a obter algum dinheiro para entregar ao final do dia, sob a ameaça de que lhe partem um braço ou uma perna”, exemplifica.
Marco Carvalho complementa que no apoio às vítimas de tráfico humano foram melhorando, ao longo dos anos, o acompanhamento em processos judiciais, porque sentiam que as vítimas estavam sozinhas em Tribunal, desprotegidas e vulneráveis. A Saúde em Português, através de uma assessoria jurídica, tem uma advogada com conhecimento na área do tráfico, que defende as vítimas em Tribunal e “isto tem dado resultados positivos, com penas efectivas e pagamento de indemnizações por parte dos exploradores”.
Segundo Marco Carvalho, quando falamos que o crime de tráfico “dá muito dinheiro” é “só fazer as contas”. E exemplifica: “Tivemos aqui um caso em Coimbra, em que as vítimas foram pessoas sem abrigo, que andavam a pedir na rua, ou arrumar carros, e que foram recrutados e explorados em Espanha. Estamos a falar de um grupo de nove a 10 homens e duas das vítimas que acompanhámos estiveram a ser exploradas mais de 10 anos. Se pensarmos no ordenado que lhes deveria ser pago – 12 meses por ano, vezes 10 anos -, fazendo as contas a um ordenado mínimo em Espanha, vezes 10 pessoas, vemos o dinheiro que o explorador angariou”… “Estamos a falar de um rede local, familiar, que angariava em Coimbra e levava para Espanha, mas temos redes internacionais, como um caso que acompanhámos, o de uma vítima de origem nepalesa em que o explorador era israelita, que tinha empresas no Nepal e em Portugal, com centenas de vítimas”, acrescenta.
Uma das apostas da Saúde em Português tem sido o projecto Mercadoria Humana, que tem como principal missão prevenir, sensibilizar e informar grupos estratégicos e públicos mais vulneráveis para o Tráfico de Seres Humanos, em particular para a exploração laboral, bem como responsabilizar e alertar todos/as para os seus deveres cívicos enquanto crime público.
O que constitui crime
O tráfico de seres humanos é um crime contra a liberdade pessoal, previsto no artigo 160.º do Código Penal Português, definindo-se por:
QUEM oferecer, entregar, recrutar, aliciar, aceitar, transportar, alojar, acolher
ATRAVÉS DE violência, rapto, ameaça grave, ardil ou manobra fraudulenta, abuso de autoridade, aproveitamento de incapacidade psíquica ou de especial vulnerabilidade
PARA exploração sexual, exploração do trabalho, exploração da mendicidade, extracção de órgãos, adopção ilegal, escravidão, exploração de outras actividades criminosas.
Texto: Luís Santos
Publicado na edição em papel do “Campeão” de 26 de Outubro de 2023