Há um Natal que nos é apresentado como evidência… inevitável, luminoso, consensual… Um Natal de vozes altas e felizes, mesas fartas, afetos organizados, risos que chegam a horas certas… Um Natal que se anuncia como promessa de felicidade e que, por isso mesmo, se transforma numa norma! E toda a norma, quando não é cumprida, transforma-se em julgamento….
A felicidade imposta é uma forma socialmente aceite de violência. Este é o Natal que se vende!… Um Natal que pressupõe pertença, estabilidade, laços intactos… Um Natal que fala de família como se fosse um lugar seguro para todos… Um Natal que exige alegria como quem exige silêncio… sem escutar quem não consegue oferecê-la…
O Natal é cruel quando transforma a solidão em exceção e a alegria em obrigação. Mas há quem não reconheça este Natal… Há quem chegue a Dezembro com o coração cansado, com a memória pesada, com o corpo a pedir apenas descanso… Há quem não tenha para onde ir… Há quem tenha de voltar a lugares onde não é acolhido… Há quem tenha aprendido que o amor nem sempre protege, que a família nem sempre cuida, que a casa nem sempre abriga…
Nem toda a família é casa; algumas são apenas paredes onde ecoa o medo. Para estas pessoas, o Natal não é reencontro… é exposição. Não é conforto… é comparação. Não é luz… é o foco cruel sobre tudo o que falta! Há silêncios que gritam mais alto nesta época! A cadeira vazia à mesa… O telefone que não toca… O nome que já não se diz… Nem toda a ausência faz barulho; algumas sentam-se connosco à mesa e fingem ser silêncio.
Há lutos recentes e antigos que regressam sem pedir licença… Há solidões que se tornam mais densas quando o mundo inteiro parece celebrar em coro… O Natal não dói por ser vazio; dói por mostrar tudo o que nunca foi preenchido. Existe uma violência subtil, quase elegante, em exigir felicidade por calendário…
Natal começou à margem
Há quem sobreviva a Dezembro como quem atravessa um incêndio sem gritar. Como se estar à margem fosse uma escolha e não, tantas vezes, uma consequência… Talvez seja preciso lembrar que o Natal, na sua origem, não foi abundância nem conforto. Foi precariedade. Foi deslocação. Foi rejeição. Um nascimento fora do centro, fora das casas, fora da protecção. Um começo frágil num mundo pouco preparado para acolher.
O Natal começou à margem… e talvez seja aí que ainda faça mais sentido. Há um Natal possível que não aparece nos anúncios. Um Natal pequeno, quase invisível. Um Natal que cabe num gesto mínimo… alguém que não pergunta demais, alguém que fica, alguém que respeita o silêncio. Há dores que não querem ser curadas no Natal, apenas respeitadas. Um Natal que não tenta salvar, nem corrigir, nem iluminar à força…
Este texto é para quem atravessa o Natal com o corpo pesado e o coração em ruínas organizadas! Para quem aprende a respirar fundo para passar o dia! Para quem sente culpa por não sentir alegria! Há quem sorria no Natal como quem pede desculpa por existir. Para quem se sente um intruso na própria época!
Vocês não estão errados… Não estão a falhar… O problema nunca foi não amar o Natal; o problema foi o Natal não saber amar quem sofre. Talvez o verdadeiro Natal não seja celebrar, mas permitir! Permitir não estar bem… Permitir não fingir… Permitir existir sem performance, sem máscara, sem obrigação…
O Natal verdadeiro talvez seja não exigir nada de quem já perdeu quase tudo… E lembrar, com uma ternura quase insuportável, que mesmo na margem… sobretudo na margem… a vida continua a importar! Continua a merecer cuidado. Continua, apesar de tudo, a resistir.
(*) Doutorando na FMUC