Coimbra  25 de Dezembro de 2025 | Director: Lino Vinhal

Semanário no Papel - Diário Online

 

O Natal sob o peso da desigualdade

25 de Dezembro 2025 Jornal Campeão: O Natal sob o peso da desigualdade

O mundo é extremamente desigual. Participação na renda ou riqueza global por grupo em 2025: os 50% mais pobres da população mundial detêm 8% da renda total e 2% da riqueza. Os 10% mais ricos, 53% da renda e 75% da riqueza (Fonte: World Inequality Report 2026)

Neste Natal, quando as luzes cintilarem nas zonas nobres de Coimbra se reflectirem nas fachadas sofisticadas do Porto e iluminarem as montras de luxo das avenidas de Lisboa, muitas pessoas, em Portugal e no mundo, passarão fome.

Em 2024, cerca de 673 milhões de seres humanos, 8,2% da população mundial, viveram nessa situação, segundo estimativas das Nações Unidas. Em Portugal, as medições do Instituto Nacional de Estatística (INE) indicam que 4,1% dos portugueses estão em insegurança alimentar moderada ou severa e 0,5% em insegurança alimentar grave, o que significa que não dispõem de comida à mesa todos os dias.

O 25 de Dezembro é, em quase todo o Ocidente e muito além dele, a data em que se celebra o nascimento de Cristo. Seria, pois, um grande engano esquecer a sua luta por justiça e igualdade.

Há na mensagem de Jesus de Nazaré, quer o bíblico, quer o histórico, seja o leitor crente ou não, a força necessária para olhar para o World Inequality Report 2026 – relatório sobre a desigualdade mundial coordenado por um grupo de economistas de relevo, entre os quais o francês Thomas Piketty, autor best-seller – e encarar os factos.

A elite da injustiça

Os estudos indicam que as elites portuguesas detêm cerca de 25% de toda a riqueza nacional. Um quarto de tudo o que o País possui, de todo o imobiliário, de todos os activos financeiros e de todas as empresas, pertence a 1% da população, menos de 110 mil hiper-ricos num universo de quase 11 milhões de pessoas.

Alargando o grupo, observa-se que os 10% mais ricos controlam 60% de toda a riqueza. Isto significa que a vasta maioria dos portugueses, mais de 9,5 milhões de pessoas, tem de repartir entre si os 40% restantes. Sem as transferências sociais do Estado, como pensões e abonos, estima-se que a pobreza em Portugal atingiria quase metade da população, sendo que 1,8 milhões já estão em risco.

O mito do esforço individual

A ilusão da meritocracia, vendida diariamente aos mais pobres, parece, numa análise superficial, justificar essas discrepâncias. A verdade, porém, é diferente. O relatório desmente categoricamente a narrativa de que quem se esforça vence. Os economistas demonstram exactamente o oposto. Ascender à riqueza é uma excepção raríssima. A riqueza é, sobretudo, um privilégio hereditário e cumulativo.

O documento expõe que a desigualdade de oportunidades começa no berço. A disparidade no acesso à educação e à saúde de qualidade “alimenta a desigualdade de amanhã”, como descrevem os autores, e garante que os filhos da elite financeira continuem no topo, enquanto os filhos da classe trabalhadora permanecem, na melhor das hipóteses, estagnados.

Ricos e criminosos

O sistema fiscal tem um papel preponderante neste cenário. Segundo o relatório, permite que os mais ricos paguem taxas efectivas de imposto inferiores às de um professor ou de um enfermeiro, por exemplo. A colecta foi concebida para tributar rendimentos do trabalho, isto é, salários, mas estes mecanismos são alheios à forma como as elites realmente enriquecem.

Enquanto um educador ou profissional de saúde recebe o seu salário directamente na conta bancária, sendo de imediato tributado, os multimilionários utilizam empresas de fachada ou sociedades holding para gerir o património.

Evitam impostos adiando a distribuição de dividendos e a realização de mais-valias. Frequentemente, financiam o seu estilo de vida através de empréstimos bancários, que não são tributáveis, vivendo, assim, sem nunca declarar rendimento no sentido fiscal tradicional.

Na prática, segundo os dados apresentados, as taxas efectivas – o imposto pago dividido pelo rendimento económico real – não aumentam no topo da pirâmide. O documento cita exemplos como a própria França e os Países Baixos, onde a taxa efectiva para bilionários cai para perto de zero, e os EUA, onde também despenca vertiginosamente, quando comparada com a da classe média-alta.

Engodo e chantagem

Além da engenharia financeira criminosa, há a fuga geográfica. O documento aponta que a mobilidade das elites aumentou e que mais de 9% vivem agora fora do seu país de origem, aproveitando jurisdições com impostos baixos ou nulos e pressionando os estados, que temem a fuga de capitais, a não os aumentarem.

Em Portugal, a Comissão Europeia assinalou que a receita fiscal é composta por 51,43% de impostos sobre o trabalho, 27,54% de impostos sobre o consumo e apenas 21,01% de impostos sobre o capital. A tributação ambiental e a tributação da propriedade representam, respectivamente, 5,07% e 1,49%, desse total.

Eis uma das razões por que a equipa de economistas defende a criação de um imposto mínimo global de 2% sobre a riqueza dos bilionários, impedido-os que reduzam a sua contribuição a zero explorando mecanismos como estes.

O auge da concentração de riqueza

O documento revela também que a fortuna dos multimilionários tem crescido a um ritmo de 8% ao ano desde 1995, mais de duas vezes o crescimento da riqueza da metade mais pobre da população. Uma dinâmica perversa em que o património acumulado ou herdado vale muito mais do que o trabalho e o talento.

Ainda assim, a Europa é apresentada no relatório como uma das regiões menos desiguais do mundo. Os 50% mais pobres auferem cerca de 19% do rendimento, contra apenas 8% a nível global.

O relatório sugere ainda que o mundo está a regressar perigosamente a níveis anteriores à Primeira Guerra Mundial. Hoje, tal como há mais de 100 anos, uma elite minúscula volta a capturar quase a totalidade do crescimento económico em um cenário global desanimador.

Clima, género e falsa caridade

O relatório indica também que os 10% mais ricos são responsáveis por quase metade das emissões globais de poluentes, enquanto a metade mais pobre, que sofrerá 75% das perdas de rendimento causadas pela crise ambiental, quase não polui.

E quem acha que a caridade virá dos países desenvolvidos engana-se. O Sul transfere para o Norte Global, através de juros e repatriamento de lucros, três vezes mais riqueza do que a que recebe em ajuda ao desenvolvimento.

Já as mulheres continuam a receber apenas cerca de 28% dos ganhos do trabalho mundial, trabalhando mais horas do que os homens e mantendo-se como a mão-de-obra invisível que subsidia a economia global.

Por fim, esta concentração extrema de recursos está a corroer a democracia. Os autores alertam para o surgimento de um sistema partidário de elites múltiplas. A do dinheiro, mais à direita, influencia a política com o seu capital. A do saber, mais à esquerda, já afastada da classe operária, influencia-a com o seu prestígio. Juntas, dividem o domínio político. Sem voz nas urnas e sem euros na carteira, aos trabalhadores resta a exclusão.

Um pedido ao Pai Natal

No dia 25 de Dezembro, perante a realidade exposta pela ciência, se realmente importa honrar o espírito cristão, a verdadeira mensagem talvez não esteja apenas na caridade, mas na coragem de questionar por que razão a alguns sobra tanto, enquanto a tantos falta o essencial.

Se é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha, cabe aos comuns, aos profissionais liberais e autónomos, aos professores e estudantes, aos médicos e enfermeiros, aos assistentes operacionais, trabalhadores do comércio e dos serviços, agricultores, pescadores e motoristas, aos advogados, magistrados, funcionários públicos, engenheiros, arquitectos, jornalistas, aos pequenos empresários, seus operários e a tantos outros – essa grande maioria, afinal – serem bastião da justiça na terra, em busca de mudança, da taxação das grandes fortunas e de uma verdadeira distribuição de renda.

Seja ele o Messias ou apenas um sábio, aquele que um dia andou pela Galileia nos ensinou que quem procura os seus próprios interesses nunca terá a vida verdadeira. Ele não veio trazer a paz, mas a espada. Essa mesma que pode ser usada para repartir o pão do mundo e reduzir uma desigualdade que deveria perturbar o sono de qualquer boa alma neste Natal.

 

Texto: Marcelo Domingues Tomaz