Na serenidade aparente de uma tarde na Rádio Regional do Centro, o estúdio encheu-se de uma emoção difícil de conter. Rui Moreira Claro falava pausadamente, com uma voz firme mas embargada, daquilo que nenhum pai quer viver: a doença oncológica de um filho. Mais do que um testemunho, as suas palavras transformaram-se num apelo: um grito contido, mas profundamente humano, por justiça social.
A presença de Rui não foi apenas a de um pai que enfrenta a dor. Foi a de um cidadão consciente, de um homem que, em plena adversidade, se recusa a calar perante as falhas de um sistema que devia proteger, mas que tantas vezes desampara. Ao lado da mulher, Ana Luísa, vive há quase dois anos a batalha diária contra o cancro do pequeno Manuel, um menino que, apesar de todo o sofrimento, simboliza a força e a esperança que movem tantas famílias em Portugal.
É a partir desta experiência dura, mas reveladora, que Rui Moreira Claro se tornou uma das vozes que dão corpo à Carta Aberta por Apoios Justos em Oncologia Pediátrica, uma iniciativa da Associação Acreditar. O documento, dirigido ao Presidente da República, ao Presidente da Assembleia da República e ao Primeiro-Ministro, é mais do que um conjunto de propostas técnicas: é um manifesto de humanidade.
A Carta expõe as dificuldades que se abatem sobre centenas de famílias portuguesas quando o diagnóstico chega. O estudo nacional promovido pela Acreditar, em 2024, mostrou que o impacto financeiro médio ultrapassa os 650 euros por mês, devido à perda de rendimentos e ao aumento de despesas com deslocações, terapias, alimentação e medicação. Números frios que escondem realidades devastadoras: pais que abandonam empregos, famílias que se desmembram, irmãos que crescem em silêncios forçados.
Entre as medidas apresentadas na Carta, sobressai a necessidade de garantir 100% do rendimento aos cuidadores durante o tratamento da criança, eliminar o tecto máximo de 2 IAS (1.045 euros), permitir que ambos os progenitores possam usufruir da licença nos momentos críticos e agilizar processos burocráticos que, como bem disse Rui, “tratam o cancro como se avisasse com 30 dias de antecedência”.
Há também uma proposta que toca o íntimo de qualquer consciência: dignificar o subsídio de funeral de uma criança, que hoje não ultrapassa 254 euros, um valor que é, nas palavras de Rui, “uma indignidade atroz”.
Mas, para lá das reivindicações, o que emerge é uma mensagem de amor e de resistência. “O cancro não é só da criança, é da família inteira”, recorda Rui, descrevendo as longas noites no hospital pediátrico de Coimbra, o som das máquinas, os choros contidos, e o milagre quotidiano de continuar a acreditar. No meio desse cenário de dor, há também uma profunda gratidão aos profissionais de saúde e às associações Acreditar, Pedrinhas, Calioasis, Liga Portuguesa Contra o Cancro que, com recursos escassos, constroem diariamente redes de apoio que o Estado ainda não soube garantir.
A força deste movimento está precisamente aí: na união entre famílias que, em vez de se fecharem na dor, escolheram transformar a experiência em acção. Rui sublinha que “não se trata de pedir privilégios, mas de exigir justiça”. A doença, lembra, já impõe tudo: o medo, a exaustão, a incerteza. O Estado não pode, além disso, impor desigualdade.
Há uma dimensão quase poética na forma como Rui fala da esperança: não como uma abstracção, mas como uma escolha diária. “Quando o cancro se mete no caminho, ninguém vai sozinho”, repete, evocando o lema da Acreditar. E acrescenta um outro que se tornou seu: “Cuidar de um filho com cancro deve ser uma prioridade, não um luxo”.
As palavras de Rui, na Rádio, ecoaram como um manifesto silencioso que pede mais do que empatia: pede compromisso. “Nós não devíamos estar preocupados com questões de subsistência quando o que está em causa é a vida de um filho”, afirmou, num tom que mescla serenidade e indignação.
A Carta Aberta é, por isso, um instrumento político e simbólico. Representa a exigência de uma sociedade que se quer mais justa e mais humana. É uma tentativa de fazer chegar à consciência pública o que tantas vezes fica escondido entre corredores hospitalares, a desigualdade que persiste quando a doença atinge os mais frágeis.
No final da entrevista, Rui deixou um apelo à acção: que todos leiam, partilhem e assinem a Carta. Que empresas e cidadãos se envolvam, através de donativos, da consignação do IRS, ou simplesmente dando tempo e atenção às associações que sustentam, quase sozinhas, estas famílias.
“Esta caminhada é por todos e para todos”, disse. E, no silêncio que se seguiu, percebeu-se que o seu testemunho ultrapassava a esfera individual: tornara-se uma causa colectiva.
Porque, afinal, a verdadeira medida de uma sociedade não se vê apenas na prosperidade dos seus números, mas na forma como cuida dos seus mais vulneráveis. E, nas palavras de Rui Moreira Claro, essa medida começa quando compreendemos que nenhum pai deve escolher entre o salário e o colo do filho doente.
A Carta Aberta é, assim, mais do que um documento. É um gesto de amor transformado em política e um convite à consciência.
Joana Alvim