Dezembro é o mês da anti-corrupção plasmado na Estratégia Nacional Anti-corrupção (ENAC), aprovada pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 37/2021, de 6 de Abril. Também a 9 de Dezembro se assinalou o Dia Internacional contra a Corrupção, data estabelecida pela Organização das Nações Unidas, para alertar consciências. O tema está cada vez mais na actualidade nacional, por essa razão, o “Campeão das Províncias” esteve à conversa com António João Maia, Presidente do Observatório de Economia e Gestão de Fraude (OBEGEF) e Professor de Ética da Administração Pública, no ISCSP – Universidade de Lisboa, que analisa o fenómeno e aborda os caminhos que Portugal tem de trilhar para combater a fraude e a corrupção.
Campeão das Províncias [CP]: Que diagnóstico traça da Agenda Anti-corrupção, lançada pelo Governo, e que evolução teve em 2025? Portugal não tem até hoje uma verdadeira reforma nesta matéria?
António João Maia [AJM]: As Agendas Anti-corrupção 2024 e 2025 surgiram na sequência da Estratégia Nacional Anticorrupção 2020-2024, estabelecida pelo XXII Governo Constitucional (liderado pelo PS), e publicada através da Resolução do Conselho de Ministros n.º 37/2021, de 6 Abril. Foi no âmbito dessa estratégia que veio a ser estabelecido e adoptado o Regime Geral de Prevenção da Corrupção (RGPC), através do Decreto-Lei n.º 109-E/2021, de 9 de Dezembro, que criou o Mecanismo Nacional Anti-corrupção (MENAC) e que determinou que as entidades, públicas e privadas, com 50 ou mais trabalhadores tenham obrigatoriamente (sob pena de sanção pecuniária, a aplicar pelo MENAC) de adotar um Programa de Cumprimento Normativo (PCN) que inclua, pelo menos: i) um Código de Conduta; ii) um Plano de Prevenção de Riscos de Corrupção e Infracções Conexas; iii) um Canal de Denúncias; iv) um Programa de Formação e Comunicação; e; v) um Responsável pelo Cumprimento Normativo. Quanto à Agenda Anti-corrupção, que teve uma primeira edição em 2024, e uma actualização em 2025, trouxe até agora pequenas alterações às medidas adoptadas anteriormente, e que no essencial, até agora, não vão muito para lá da alteração do modelo de gestão do MENAC (Decreto-Lei n.º 70/2025, de 29 de Abril), que passou a ser realizado por um Conselho Directivo.
[CP]: Que propostas considera o OBEGEF serem essenciais e que ainda não estão operacionais, seja na prevenção, seja na repressão?
[AJM]: Aquando da campanha eleitoral para as últimas eleições legislativas, o OBEGEF apresentou a todos os partidos políticos um conjunto de propostas para o combate à corrupção 2025 que considera muito relevantes e oportunas para a prevenção, detecção e punição da corrupção, das quais cabe destacar as seguintes: avaliação dos resultados da estratégia 2020-2024; maior regulamentação nos processos de lobbying, conferindo-lhes mais transparência e controlo sobre situações de conflitos de interesses; reforçar a educação cívica, envolvendo todos os níveis formais de ensino, incluindo as Universidades, com inclusão nos currículos escolares de temas como ética, integridade, cidadania, deontologia, direitos humanos e direitos fundamentais, finanças e gestão financeira, função do Estado e modelos de organização e gestão, União Europeia, sua função e modo de funcionamento, e participação democrática, no pressuposto de que a democracia requer o envolvimento permanente de cidadãos esclarecidos e informados; melhorar a eficácia dos sistemas de controlo interno e externo das estruturas do Estado, reforçando as funções de entidades como o Tribunal de Contas e as Inspecção Setoriais, incluindo com o recurso a novas tecnologias de IA no controlo dos procedimentos e na sinalização e despiste de áreas e fatores de risco; impedir a candidatura a qualquer cargo político electivo de cidadãos condenados (com decisão transitada em julgado) por crimes cometidos no exercício de funções públicas; incrementar a transparência e eficácia nos processos de financiamento dos partidos políticos, incluindo através da obrigatoriedade de cumprimento das medidas do RGPC; implementação do crime de enriquecimento ilícito, punindo as situações de desconformidade entre património titulado e rendimentos fiscalmente declarados; reestruturar, fortalecer, motivar e formar adequadamente o quadro de recursos humanos do MENAC, dada a abrangência de funções que lhe estão confiadas, dotando-o das competências necessárias, que, dada a sua especificidade, devem incluir formação em áreas com Administração Pública, Auditoria, Ciências Sociais, Criminologia, Direito, Economia, Gestão, Sociologia, Sociologia Criminal, Sociologia das Organizações, entre outras.
[CP]: Portugal tem tido resultados pouco animadores no Índice de Percepção da Corrupção. A isso se deve também a inércia e a ausência de apostas claras nesta matéria?
[AJM]: Como se sabe, a questão da percepção da corrupção está fundamentalmente associada ao processo de mediatização de algumas situações suspeitas. Todos os estudos académicos nesta área são claros: é necessário que existam contextos de liberdade de imprensa para que o problema seja trazido para a agenda pública. Para que a sociedade fique consciente de que tem um problema, e mais habilitada a procurar soluções. O que temos verificado em Portugal é uma constante publicação de notícias de situações suspeitas, a maioria delas envolvendo o exercício de funções de alta direcção política e administrativa, acompanhadas de uma grande ausência de notícias de punição sobre este tipo de práticas, bem como de medidas concretas de prevenção e controlo. Este contexto (muitos casos expostos, poucas notícias de punição e controlo) tende a gerar, junto do cidadão comum, percepções de impunidade e de fraca vontade política em encontrar soluções mais eficazes para controlo e repressão da corrupção.
[CP]: Sendo tema-chave por parte dos partidos, em praticamente todas as campanhas eleitorais, e sendo unânimes as intenções políticas, por que nunca se avançou em Portugal com uma grande reforma – Pacto de Regime – nesta matéria, quando ao mesmo tempo, durante as últimas décadas, tem recaído sobre muitos políticos suspeitas nesta matéria, alguns até em casos judiciais mediáticos?
[AJM]: O factor-chave nestas questões é mesmo a vontade política. Só com uma vontade política genuína de todas as forças envolvidas no processo, ou pelo menos das principais, será viável identificar e sobretudo adoptar medidas de controlo potencialmente mais eficazes. De outro modo, tenderemos a assistir a debates, reflexões e troca de argumentos em que todos afirmam estar firmemente alinhados na procura de soluções, mas depois a contra-argumentar contra as soluções apresentadas pelas outras partes, porque aqui ou ali colocam em causa algum princípio fundamental.
[CP]: A capacidade de acção do sistema judicial é suficiente ou isso também tem sido um problema no combate a este flagelo?
[AJM]: O sistema judicial também poderia e deveria ser melhorado. Deste logo na capacitação dos recursos, através do reforço do número de polícias, magistrados e juízes, incluindo na sua formação técnica específica para trabalhar com este tipo de criminalidade.
[CP]: Que impactos mais graves tem a corrupção no sistema democrático e no desenvolvimento do País?
[AJM]: A corrupção é reconhecidamente um problema de má gestão pública, que mina a relação fundamental de credibilidade e confiança que deve existir entre os cidadãos e as instituições, e que fragiliza o funcionamento equilibrado da economia, debilitando as finanças públicas, tanto no financiamento das políticas públicas, como nos custos de funcionamento do Estado e das suas estruturas. A corrupção fragiliza a coesão social em torno dos valores da ética e da integridade, expondo particularmente os mais vulneráveis e desprotegidos da sociedade.
OBEGEF: há 17 anos a lutar contra a fraude
O Observatório de Economia e Gestão de Fraude (OBEGEF), fundado a 21 de Novembro de 2008, assume-se como uma associação privada sem fins lucrativos, que tem como objectivo um melhor conhecimento da fraude, a sua prevenção e detecção mais eficaz, visando uma opinião pública esclarecida e uma sociedade mais ética. São objectivos do OBEGEF ajudar as instituições, privadas e públicas, a reduzir o risco de fraude e aumentar a sua rendibilidade; formar quadros técnica e eticamente preparados para a implementação de políticas antifraude de detecção e prevenção; e contribuir para um melhor conhecimento da realidade portuguesa, europeia e mundial, revelando e prevenindo a economia não-registada e a fraude.
Entrevista: Ana Clara (Jornalista do “Campeão” em Lisboa)