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Natal e Ano Novo: mesmas festas, noutro ritmo

21 de Dezembro 2025 Jornal Campeão: Natal e Ano Novo: mesmas festas, noutro ritmo

A casa enche-se antes de a mesa estar pronta. Há crianças a correr entre cadeiras, vozes cruzadas na sala, tachos ao lume e pratos que vão e vêm da cozinha. Chegam familiares sem avisar, vizinhos que entram só para cumprimentar e acabam sentados, música e brindes que se prolongam pela noite. A festa cresce com cada pessoa querida. Podia ser o Natal e o Ano Novo de uma família portuguesa dita tradicional. E é: o Natal e o Ano Novo dos ciganos portugueses.

Não há um ritual único para as comemorações. Há práticas que regressam com variações: família alargada reunida, comida em abundância, visitas constantes, música, dança e uma ética de hospitalidade que funciona como norma.

A festa começa cedo

Nas casas ciganas, o Natal começa antes da consoada. Os dias anteriores são ocupados por compras em quantidade, organização da casa e trabalho colectivo na cozinha. Há tarefas com tempos próprios e regras claras, muitas vezes reservadas às mulheres da família, num espaço de convívio e de transmissão de tradições.

Maria da Graça Conceição Grilo, dona de casa, de 38 anos, de Coimbra, descreve o arranque das festividades: “Compramos farinha, laranjas, muitos ingredientes e fazemos um doce típico, a que chamamos filhó”. Depois, a preparação torna-se momento comum: “As mulheres juntam-se, põem os aventais… E vão amassando”.  “Esse dia é só para nós”, partilha. “É um tempo dedicado à união das gerações femininas, à volta das comidas e costumes”.

A mesa como território comum

Um dos preconceitos mais persistentes cai rapidamente quando se olha para a mesa. Os elementos centrais do Natal português aparecem, preparados de formas diferentes, como acontece em qualquer família de norte a sul.

Maria da Graça fala dos pratos servidos como quem fala de casa: “No dia 24 juntamos a família toda e comemos bacalhau… Fazemo-lo cozido ou frito, geralmente”. E a lista continua sem exotismos: “Fazemos também ovos, batata, polvos. Muita coisa. E uns doces na mesa”.

A diferença não está nos ingredientes, mas no modo como o saber culinário se transmite: há pratos guardados para quem tem experiência, receitas que não passam de imediato, aprendizagem por observação e reconhecimento. “Eu sou nova, ainda não sei fazer, por exemplo, o feijão que consideramos tradicional… A minha irmã mais velha faz e logo me ensinará”, explica Maria da Graça. “Depois de algum tempo, umas passam às outras para dar continuidade a tradição”.

Comemorações alongadas

Para muitas famílias, o Natal não cabe num só dia. A quadra prolonga-se, por vezes, até ao Ano Novo e, nalguns casos, até ao Dia de Reis. A lógica é simples: criar tempo para que todos se encontrem.

As visitas são parte central desse modelo. Vai-se de casa em casa, prova-se a comida, conversa-se, dança-se, senta-se para partilhar. Manuel Célio dos Santos, motorista, de 55 anos, da Figueira da Foz, descreve o Natal com humor e detalhe: “Não ficamos só na nossa casa. No dia 24 e no dia 25 vamos a casa de uns, comemos. Depois vamos a casa de outros, comemos… Andamos assim, à noite, a provar qual comida dos parentes e amigos é melhor”, diverte-se.

O Ano Novo surge como continuidade natural: nova mesa, ementas diversas, o mesmo impulso de união. “No Ano Novo também nos juntamos assim. Pomos a mesa… Com outras comidas”, diz. Eles descrevem que o essencial da quadra está menos num convite formal e mais numa circulação familiar constante, feita de visitas, prova de pratos e convívio prolongado.

Porta aberta

Se há um traço que atravessa quase todas as descrições destas festas é a ideia da porta aberta. Durante o Natal e o Ano Novo, a casa não é apenas de quem lá vive: é um espaço de acolhimento. Entrar, sentar-se, comer e ficar não é visto como invasão, mas como cumprimento de uma norma social.

Maria da Graça descreve-o sem rodeios: “As nossas portas ficam abertas para quem quiser entrar”. E precisa o detalhe que mais surpreende quem vem de fora: “Não há convite: as pessoas são sempre bem-vindas”.  Fechar a casa, nestes dias, pode ser lido como quebra da tradição. Abrir é manter os costumes vivos – e é por isso que a comida nunca é feita à conta certa.

Outro ponto de contacto forte com o Natal dito tradicional é a centralidade dos mais velhos e das crianças. Os mais idosos da casa ocupam um lugar simbólico de destaque, marcando o início da refeição e o tom da reunião. As crianças, por sua vez, circulam com liberdade, sob o olhar de todos.  O cuidado é partilhado. Durante a festa, não há vigilância individualizada: qualquer adulto chama, corrige, brinca ou protege.  Para a sociologia, este é um indicador de coesão. A criança pertence ao grupo naquele momento, não apenas ao núcleo parental.

O que não se vê de fora

O que se manifesta de forma visível no Natal e no Ano Novo – união, presença, apoio é reflexo de uma rede que funciona ao longo do ano. Em situações de doença, fragilidade ou dificuldade, essa mesma lógica activa-se: familiares deslocam-se, ajudam, permanecem. É também por isso que a quadra tem peso: não é só celebração, é reafirmação de laços num contexto social em que muitas famílias ciganas carregam, historicamente, a experiência de distância e desconfiança.

Olhar para estas festas com atenção permite sair de dois atalhos fáceis: o estereótipo negativo e a exotização. O que surge no lugar disso é reconhecimento – dos mesmos elementos simbólicos que estruturam qualquer Natal e Ano Novo: família, mesa, tempo partilhado, cuidado intergeracional, música e alegria, ainda que vividos noutro ritmo e noutra escala.

No fim, a surpresa mantém-se: quando se descrevem as festas ciganas sem rótulos, elas deixam de parecerem distantes. Não por serem iguais, mas por falarem a uma experiência que todos conhecem. Se o Natal e o Ano Novo são um idioma universal no Ocidente, aqui ele é dito com sotaque próprio – e com as mesmas palavras: estarmos juntos, de facto.

Marcelo Domingues Tomaz

Texto publicado na edição em papel do Campeão das Províncias de quinta-feira, 18 de Dezembro de 2025