Entre o Mondego e as ruas da Baixa, Coimbra guarda a história do União Foot-Ball Club que é feita de trabalho, laços de vizinhança e resistência – para além de futebol. Nascido há mais de um século, o atual Clube União 1919 continua a ser um rosto da identidade popular da cidade.
Fundado na viragem para os anos 20 do século passado, o União não surgiu nas elites culturais ou desportivas. Nasceu de conversas informais em lojas e oficinas, da vontade de jovens comerciantes, artesãos e operários que procuravam um espaço que os representasse. Foi esse impulso coletivo que deu forma a um clube que, desde o início, soube aproximar a cidade. Enquanto Coimbra era frequentemente vista pela lente da academia, o União aparecia como a voz de quem preenchia as ruas: sapateiros, alfaiates, trabalhadores têxteis, vendedores da Baixa, gente que via no futebol não apenas um jogo, mas um prolongamento do quotidiano.
O Campo da Arregaça
A força comunitária do clube consolidou-se cedo. O Campo da Arregaça, estádio histórico, inaugurado a 14 de outubro de 1928, tornou-se um território da memória local. Ali reuniam-se famílias inteiras, vizinhos de rua, miúdos que sonhavam vestir a camisola azul-ganga com o emblema da cruz de Santiago, vermelha sobre fundo azul e coroa dourada. O estádio funcionava como uma continuidade do bairro: palco de encontros, conversas e rituais de domingo entre diferentes gerações. A Arregaça não era apenas um campo — era um ponto de ancoragem emocional, uma espécie de praça pública onde todos se reconheciam.
O espírito de comunidade do União
Ao longo das décadas, a cidade transformou-se, mas o União manteve o papel de espelho da comunidade que o criou. Quando o comércio local ganhou força, o clube tornou-se símbolo de orgulho para quem vivia dos ofícios e o União era motivo de conversa ao balcão das mercearias e cafés. Aliás o Café Santa Cruz está profundamente ligado à história do clube. Era frequentado por sócios, atletas, dirigentes e treinadores.
Quando os bairros cresceram e a mobilidade alterou as dinâmicas urbanas, o clube continuou a ser um ponto de referência para a memória coletiva.
Houve momentos de entusiasmo, como em 1972, quando sobe à 1.ª Divisão e marca uma presença histórica entre os maiores do país, o que agitou a cidade e lhe devolveu um sentido de unidade. Mas houve também crises profundas, que espelharam as dificuldades de um futebol cada vez mais distante das estruturas comunitárias que outrora o sustentavam. O União sentiu na pele as pressões da profissionalização, da exigência financeira e da crescente desigualdade entre clubes. E foi precisamente nesses períodos que a sua base social mais se evidenciou: sócios, voluntários e antigos atletas tornaram-se motores da persistência, permitindo que a instituição sobrevivesse a quedas, dívidas e reestruturações.
A mudança de nome
A mudança de nome para Clube União 1919, em 2016, simbolizou esse esforço de reconstrução. O antigo Clube de Futebol União de Coimbra entrou em processo de insolvência e, para salvar o seu legado, registou-se um novo o Clube União 1919. Mais do que um ajuste formal, significou um pacto tácito entre direção, associados e cidade: o compromisso de não deixar morrer a herança que atravessou gerações. A partir desse período, o clube renovou a aposta na formação, reaproximou-se das estruturas sociais e reergueu a sua identidade, não através de feitos desportivos, mas através do sentido comunitário que sempre o distinguiu, com o espírito do “vai tudo” – expressão criada por Álvaro dos Santos, em 1949, quando, cansado de responder à pergunta sobre quem ia nas excursões de apoio ao clube e irem sempre os mesmos, disse: “vai tudo.” A frase começou a generalizar-se nas deslocações e revela bem o espírito do clube.
Um vínculo afetivo e identitário que atravessa gerações.
Hoje, o União continua presente — não apenas no relvado, mas sobretudo nos laços que mantém com a cidade. Os cafés tradicionais ainda acolhem conversas de antigos jogadores e sócios; as camadas jovens mostram que o clube continua a ser porta de entrada para o desporto de bairro; os adeptos, espalhados entre memórias de décadas e novos entusiasmos, mantêm vivo o emblema azul e vermelho. Mesmo longe da ribalta competitiva, o União conserva aquilo que muitos clubes perderam: um vínculo afetivo e identitário que atravessa gerações.
O seu legado não se mede apenas em resultados ou títulos esporádicos, mas na forma como moldou a sociabilidade de Coimbra. O União deu expressão a uma cidade que nem sempre se revia nos símbolos académicos; proporcionou encontros, ofereceu palco a crianças que aprendiam, pelo futebol, a viver a comunidade; construiu pertença onde antes havia apenas vizinhança. A sua história é a de um clube que, resistindo a crises, mudanças e reestruturações, nunca deixou de refletir quem realmente importa no tecido urbano: as pessoas comuns.
Um dos primeiros clubes a incorporar o futebol feminino
Num tempo em que o futebol se distancia cada vez mais das raízes populares, o União 1919 permanece como testemunho de que a força de um clube não reside apenas nos seus resultados, mas na capacidade de ser casa, memória e ponto de encontro. O futuro apresenta desafios — financeiros, estruturais, competitivos —, mas nenhum deles apaga o que o União representa: uma identidade entranhada na vida da cidade, construída devagar, domingo após domingo, em campos de terra e relvados partilhados, e mantida viva por uma comunidade que nunca deixou de acreditar. Já este ano, a 8 de março de 2025, a equipa feminina Sub-19 do União 1919 conquistou a Taça Interdistrital Sub-19 Feminina, segundo a Associação de Futebol de Coimbra. O União foi, aliás, um dos primeiros clubes a incorporar o futebol feminino (1972), revelador do seu espírito emancipador.
O União é mais do que um clube. É uma história viva da cidade. Uma história feita de pessoas, de bairros, de cafés, de ruas. Uma história que resiste. Uma história que, enquanto houver alguém que vista a azul-ganga com orgulho, continuará a ser contada.
Depoimento de João Moreira, autor da personagem Bruno Aleixo e membro da claque Rambos da Arregaça.
É sempre de bom tom torcer-se pelo clube da terra (mesmo que também se torça por algum dos “grandes”). Coimbra, porém, como boa metrópole que é (agora até tem metro e tudo), serve de sede a mais que um “clube da terra”. Como proceder nestas situações? Escolha-se o que estiver mais de acordo com os valores de cada um. Eu fiz assim, bem novo, e ainda não me arrependi. Amo muito o meu União. Não vou ver os jogos todos, mas amo.
Primeiro Jogo Oficial
União Foot-ball Coimbra Club 0 – Grupo Foot-ball Nacional 2
«Frente a frente as equipas do União FCC e Grupo F Nacional, agrupamento este da Figueira da Foz. Já então a salutar rivalidade entre as duas cidades se fazia sentir, a tal ponto que, os cronistas da época afirmavam existir apostas, fazendo-se prognósticos. O jogo foi marcado para o dia 14 de setembro de 1919, pelas 13 horas no Campo de Santa Cruz, sob a arbitragem de A. Velindro.
Primeira parte para o Nacional vence por 2 bolas a 0. Porém o Jogo não chegou ao fim.
Motivo:
No segundo tempo rebentaram as duas bolas e como os figueirenses tinham de apanhar o comboio de regresso às 16:20 o jogo não acabou.»
“O Despertar” 24/09/1919, referido no livro Coimbra Profunda, Clube de Futebol União de Coimbra, dos autores Júlio Ramos, Diamantino Carvalho e Aurélio Santos.
Ana Rajado