Coimbra  17 de Novembro de 2025 | Director: Lino Vinhal

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Conímbriga: Redescobrindo um dos maiores e mais bem preservados tesouros de Portugal

16 de Novembro 2025 Jornal Campeão: Conímbriga: Redescobrindo um dos maiores e mais bem preservados tesouros de Portugal

O planalto de Conímbriga é triangular, margeado pela Ribeira dos Mouros, com a malha urbana assente no calcário de Sicó e o arrabalde a norte, tornando-o um assentamento seguro

No sopé da Serra de Sicó, onde o calcário aflora em blocos brancos e o vento traz o cheiro das oliveiras e dos sobreiros, ergue-se o planalto de Conímbriga. Situa-se no concelho de Condeixa-a-Nova, cerca de 16 quilómetros a sul de Coimbra e a 150 metros de altitude. É um esporão natural delimitado a sul pela Ribeira dos Mouros, cujas margens encaixadas definem um pequeno sistema flúvio-cársico – um vale estreito escavado pela água na rocha – onde o curso líquido serpenteia entre penedos cobertos de musgo e fetos.

O solo é duro, seco no estio e, na Primavera, cobre-se de alecrim e tomilhos, arbustos aromáticos comuns nos matos mediterrânicos. Surgem urzes pontuais em manchas descarbonatadas e ervas-cidreiras nas sombras húmidas, com as cigarras e os grilos compondo o rumor do ar ainda quente. As encostas, antigas terras de cultivo, exibem ainda socalcos, com azinheiras e zambujeiros, e os sobreiros aparecem pontualmente.

As suas vertentes abruptas conferem-lhe proteção natural, o que, como nota o doutor Vítor Manuel da Silva Dias, professor especialista em Arqueologia Romana, director do Museu Nacional de Conímbriga e nosso guia nesta viagem que começa agora, só se percebe plenamente quando se avança a pé até o limite das muralhas: “Estas falésias são muito mais verticais do que parecem. O sítio é imensamente defensável. Essa é a razão de tantos povos terem-se fixado aqui”.

O horizonte abre-se a poente, em direcção ao vale do Mondego: o Sol, a meio do Outono, brilha pálido entre as nuvens e a sua luz é quase cegante, reflectida nas pedras de muralhas claras que resistem há quase dois milénios. Do alto, o olhar domina toda a planície oeste, até onde a moderna IC2 corre paralela ao corredor da Via XVI, estrada imperial que ligava Olisipo a Bracara Augusta, e ainda alcança muito além.

Quem chega a Conímbriga vindo de Coimbra percebe a transição subtil entre presente e passado. O actual trajeto cruza o perímetro arqueológico e acompanha, por alguns momentos, o mesmo caminho por onde marcharam legiões romanas. À direita, o Museu é a âncora contemporânea no meio dos vestígios, estrutura discreta, da qual parte o percurso visitável. Este atravessa o fórum, as termas, uma morada senhorial com pátio e fontes ornamentais conhecida como Casa dos Repuxos, e termina diante da muralha do Baixo Império, parede ciclópica erguida no final do século III ou no início do IV, ainda hoje conservada em largos troços, que parecem suspender o tempo.

Às margens do sítio, canas e salgueiros lançam sombras, bandos de andorinhas riscam o céu e lagartixas aquecem-se nos muros de alvenaria com núcleo de opus caementicium – mistura romana de cal e agregados. É frequente também ver milhafres-pretos e peneireiros-vulgares planando em círculos lentos sobre a região. O visitante sente o contraste entre o silêncio mineral e o sussurro do campo.

Tudo isto compõe o ambiente de um dos sítios arqueológicos mais requisitados de Portugal, que em 2024 recebeu mais de 135 mil visitantes. Monumento Nacional desde 1910 e futuro candidato ao Património Mundial, ele deve, nos próximos anos, ter novas áreas abertas, como o Vale Norte, onde as escavações mais recentes descobriram compartimentos quase intactos de habitações e um anfiteatro romano, que aguarda para ter a sua imponência revelada.

Conímbriga: o fio das civilizações europeias

Percebe o fio condutor: a defensabilidade deste esporão calcário que hoje conhecemos como Conímbriga foi sempre atrativa e explica por que aqui se fixaram, ao longo da história, vários povos. A topografia controla vales e passagens, fornece água e visibilidade e oferece abrigo quando o mundo muda.

As evidências ligam esta condição à habitação de pelo menos seis grupos distintos: das primeiras comunidades pré-históricas ao castro da Idade do Ferro, à cidade romana e às reconfigurações tardo-antigas, atravessando a presença sueva e visigótica e, já na Alta Idade Média, sinais de circulação islâmica.

Como resume o doutor Vítor Dias, “Conímbriga é uma síntese do Mediterrâneo no extremo Ocidente. Permite observar, num mesmo espaço, a continuidade das formas de habitar desde a Pré-História até à Alta Idade Média”.

O alvorecer das primeiras comunidades

Ao nascer do Sol, vês cabanas baixas, lareiras ao centro e esteiras sobre o chão batido. Os gestos são elementares e repetidos: moer cereal na mó de mão, aquecer água, vigiar talhões cultivados e um pequeno rebanho de ovicaprinos. A sociabilidade é próxima. As trocas ocorrem a curta distância, com sal, cerâmica e utensílios simples.

No registo arqueológico, as evidências são discretas e bem documentadas nos registos museográficos: cerâmica de fabrico manual, pesos de tear, artefactos líticos talhados e indícios de silos. Em síntese cronológica, a investigação corrente no sítio admite ocupação possível desde o Neolítico e confirma presença na Idade do Bronze. Não foram identificados edifícios desta fase, mas níveis estratigráficos delgados e conjuntos artefactuais sustentam uma continuidade humana muito anterior ao traçado romano.

As análises de sementes e restos vegetais, coordenadas por João Pedro Tereso, arqueobotânico da Universidade do Porto, indicam uma dieta centrada em cereais e leguminosas cultivados localmente. Os estudos zooarqueológicos de Cléa Detry, zooarqueóloga da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, confirmam pequenos rebanhos de ovinos e caprinos e uma pastorícia de subsistência com continuidade regional ao longo dos séculos. Conjugadas, estas linhas de evidência – atividades domésticas, trocas de proximidade e traços materiais discretos – compõem o retrato operativo do quotidiano agrícola das primeiras comunidades fixadas em Conímbriga.

“Durante muito tempo, olhou-se para Conímbriga apenas como cidade romana. Hoje sabemos que o substrato pré-romano é denso e decisivo para compreender a evolução do povoamento”, observa Vítor Dias.

O meio-dia no castro da Idade do Ferro

Com o Sol alto, a vida do povoado intensifica-se. Teares verticais trabalham. Há metalurgia de pequena escala. Casas simples alinham-se junto de silos, e paliçadas delimitam o perímetro. Pelo Mondego circulam contas vítreas, marfim trabalhado e pequenas ânforas. À mesa, papas de cereal, porco salgado e queijo de cabra. A lã fixa-se com fíbulas. A vizinhança organiza-se em rede entre castros.

No registo arqueológico distinguem-se dois planos. No planalto, materiais de tradição indígena num povoado fortificado. Na foz do Mondego, Santa Olaia – na área da atual Figueira da Foz – documenta contactos fenício-púnicos e redes orientalizantes. Estes achados foram reinterpretados à luz de estudos recentes conduzidos por Sara Almeida, arqueóloga da Universidade de Coimbra, em colaboração com Raquel Vilaça e Ana Margarida Ferreira. A reavaliação de um vaso grego arcaico de Santa Olaia reposicionou o Baixo Mondego no mapa atlântico das trocas do primeiro milénio a.C., reforçando a imagem de uma comunidade integrada em redes mediterrânicas de contacto e intercâmbio cultural.

O sufixo -briga, proveniente do céltico hispânico – comum em antigos topónimos do Ocidente peninsular e significando “forte” ou “lugar elevado” –, reforça a leitura de Conímbriga como um antigo castro habitado entre os séculos VIII e II a.C. Essa interpretação, desenvolvida por Joseph Piel, filólogo ligado às universidades de Coimbra e de Lisboa, tornou-se uma referência clássica para o estudo dos nomes de lugares com esta terminação.

Uma tarde na monumental cidade romana

A tarde instala estabilidade: domus com peristilo e jogos de água, colunatas, lojas e oficinas em quarteirões definidos, fórum assente sobre criptopórtico com basílica e cúria, e termas que organizam corpo e conversa. O aqueduto de Alcabideque alimenta tanques e jardins. Na Casa dos Repuxos, a luz prende-se nas tesselas do mosaico. A cidade respira num compasso de pedra e argamassa.

A investigação arqueológica confirma que Conímbriga alcançou o estatuto de municipium na época flaviana e integrou-se na rede urbana da Lusitânia. Equipas conjuntas da Universidade de Coimbra e do Museu Nacional de Conímbriga estimam que, no século I, a cidade teria já cerca de 10.000 habitantes, suficientes para sustentar termas, fórum e espetáculos públicos.

O aqueduto alterna troços subterrâneos com arcaria já perto da cidade. Dos dezasseis arcos subsistem vestígios junto ao acesso. A captação faz-se no castellum de Alcabideque, a mais três quilômetros de distância.

Os marcos aqui fixados não são apenas monumentais. A Casa dos Repuxos foi descoberta e escavada a partir de 1939 e tornou-se ícone do sítio. O anfiteatro foi reconhecido em 1971 e estudado sistematicamente a partir de 1992 por equipas lideradas por Virgílio Hipólito Correia, arqueólogo da Universidade de Coimbra e então diretor científico local, e José Ruivo, arqueólogo do Museu Nacional de Conímbriga.

O crepúsculo do Baixo Império

No fim da tarde, vês ruas muradas pelo interior, pátios fechados e colunas antigas invertidas na fundação de um muro. O anfiteatro fica fora da nova cerca, numa obra apressada e calculada. A cidade protege-se e aceita perder amplitude para ganhar defesa.

No registo arqueológico, as evidências concentram-se na muralha tardo-romana (séculos III–IV), com panos robustos que cortam quarteirões anteriores e reaproveitam materiais. A estratigrafia documenta remodelações internas e portas entaipadas. Enterramentos tardo-romanos – incluindo os associados à chamada Casa dos Esqueletos – e depósitos monetários de cronologia baixa compõem o retrato de uma urbe em contração. As transformações desse período são documentadas por investigações conjuntas da Universidade de Coimbra e da Universidade de Évora, que demonstram que Conímbriga partilhou o processo de retração urbana observado em muitas cidades do Ocidente tardo-antigo, com muralhas reforçadas, quarteirões cortados e espaços domésticos adaptados a novas funções.

A noite de alarmes sueva

As portas são vigiadas desde as primeiras horas. O tecido urbano, já contraído, sofre novos golpes. Persistem sinais cristãos e algum fluxo monetário. A estabilidade política quebra-se e a sobrevivência torna-se o horizonte possível.

Os vestígios confirmam o que as crónicas antigas relatam. Hidácio, bispo de Chaves no século V, menciona ataques e saques a Conímbriga durante a década de 460. Hoje, os historiadores leem esses relatos com cautela, confrontando-os com as evidências arqueológicas e as novas edições críticas do texto.

A escuridão visigótica

A cidade é menor e mais pobre, mas mantém a voz religiosa. O latim tardio ressoa em inscrições breves. A luz é de lamparina, e o tempo social organiza-se em torno do calendário cristão.

A documentação é sólida. Lucêncio, bispo de Conímbriga, assina as atas do I Concílio de Braga, em 561, e do II Concílio de Braga, em 572. A região integra-se no reino visigótico em 585. Fragmentos associados à chamada Domus Tancinus revelam reocupações junto do centro cívico. Tremisses visigodos no espólio confirmam circulação monetária.

A cronologia episcopal foi consolidada por estudos de Nuno Borges, da Universidade de Coimbra, a partir dos concílios de Braga e de inscrições locais. Leituras de López Quiroga, sobre a Tardo-Antiguidade, e investigações de Rui Reis e equipa sobre redes hidráulicas e reocupações urbanas ajudam a compreender como a cidade se reorganizou sob domínio visigótico, mantendo vida religiosa e trocas.

Madrugada em al-Andalus

O vale volta a ganhar importância. Vês moedas islâmicas do século VIII a cruzar a região por rotas reativadas. A presença não recompõe uma cidade como a romana, mas atesta contactos e algum assentamento.

As evidências são sobretudo numismáticas. No Museu Nacional de Conímbriga estão inventariados um dirham de 736, de prata, e um fals de 748, de bronze – peças-chave para ancorar a cronologia local de circulação islâmica. As equipas do Museu e da Direção-Geral do Património Cultural interpretam-nas como indício de circulação mais do que de reocupação permanente. Em paralelo, estudos comparativos de Cléa Detry, em contextos islâmicos do Centro do país, apontam continuidades com práticas alimentares herdadas do período romano.

A alvorada de um novo dia

Grande parte do que um dia foi Conímbriga ainda permanece sob a terra. O Vale Norte devolve compartimentos quase intactos, e o anfiteatro pede uma leitura integrada. O percurso entre a Casa dos Repuxos e o anfiteatro, pensado a pé, restituirá ao visitante a escala urbana da antiga cidade. O aqueduto lê-se hoje do castellum de Alcabideque às fontes. O Bico da Muralha convida a um miradouro que una paisagem e história.

As campanhas mais recentes, coordenadas pelos arqueólogos Ricardo Costeira da Silva, José Ruivo, Virgílio Hipólito Correia e Vítor Dias, revelaram novos compartimentos a norte da Casa dos Repuxos, vestígios de um possível complexo termal e uma abside preservada com invulgar qualidade. Vítor Dias resume a viragem metodológica que hoje define o trabalho em Conímbriga: “O futuro da arqueologia está na convergência entre escavação, laboratório e leitura digital do território e é isso que tentamos aplicar aqui”.

Os estudos arqueobotânicos, dirigidos por João Pedro Tereso e Filipe Vaz, analisam macro-restos e grãos de pólen para reconstruir o ambiente agrícola. Em paralelo, Cléa Detry coordena as leituras zooarqueológicas que revelam espécies consumidas e modos de criação ou caça. A convergência destas disciplinas permite compreender, com detalhe inédito, como os conimbricenses se alimentavam, comerciavam e se adaptavam ao clima e ao território.

Novas medições de arquitetura e hidráulica, conduzidas pelas equipas técnicas da Direção-Geral do Património Cultural e da SIPA, em parceria com o Museu e a Universidade de Coimbra, estão a redefinir o conhecimento sobre o sistema urbano e o abastecimento de água. O levantamento por fotogrametria, o laser scan e a nuvem de pontos servem o registo científico e a mediação cultural, com visualizações interativas acessíveis ao público.

A investigação prossegue com a digitalização integral do sítio e o objetivo de integrar o futuro circuito pedonal entre a Casa dos Repuxos e o anfiteatro. O dia recomeça no terreno e no laboratório. “A ciência devolve as estruturas ao conhecimento; o museu devolve-as à comunidade. Conímbriga vive nesse diálogo”, encerra Vítor Dias.

E talvez seja esse o seu segredo maior: sob cada pedra há ainda perguntas por escavar – e homens e mulheres prontos para lhes dar voz.

Marcelo Domingues Tomaz

Reportagem publicada na edição em papel do Campeão das Províncias de quinta-feira, 13 de Novembro de 2025