Por muito que o supermercado pareça sempre bem abastecido, o sistema alimentar global está a atravessar uma crise silenciosa. Da América do Sul ao Alentejo, dos arrozais do Sudeste Asiático aos campos de milho do Baixo Mondego, a agricultura está a transformar-se — e nem sempre para melhor. A promessa de uma produção mais rápida, mais abundante e mais rentável esconde realidades preocupantes: a perda de diversidade alimentar, a dependência de sementes comerciais, a degradação dos solos e uma crescente fragilidade dos sistemas alimentares locais.
No centro desta mudança está o cultivo contínuo de uma única espécie vegetal numa grande área — aliada ao uso de sementes altamente produtivas. Um modelo que, embora eficiente a curto prazo, tem levantado sérias questões sobre soberania alimentar, e impacto ambiental.
A fetiche da produtividade
Com o crescimento da população mundial e a pressão para alimentar mais bocas com menos recursos, a resposta mais óbvia para muitos governos e empresas tem sido clara: produzir mais. Para isso, investe-se em sementes híbridas ou geneticamente modificadas, que prometem colheitas maiores, ciclos mais rápidos, resistência a doenças. A lógica parece infalível: mais sementes “melhoradas”, mais produtividade, mais segurança alimentar.
Mas nem tudo o que reluz é ouro. Estas sementes, embora eficazes em certos contextos, são frequentemente uniformes do ponto de vista genético. Pior: muitas vezes pertencem a grandes multinacionais, que detêm os direitos sobre a sua produção e venda. O agricultor que ontem guardava as suas sementes de um ano para o outro, hoje tem de comprá-las novamente todas as épocas. E com elas, comprar também os fertilizantes, pesticidas e até a tecnologia necessária para garantir os resultados prometidos.
Quando perdemos o controlo sobre o que comemos
É aqui que entra um conceito fundamental, mas ainda pouco discutido fora dos círculos especializados: a soberania alimentar. Não basta ter comida. É preciso que os países, as comunidades e até os próprios agricultores possam decidir o que produzir, como produzir e para quem. Quando os campos são tomados por monoculturas de milho ou soja para exportação, onde fica o espaço para os alimentos que compõem a dieta tradicional de uma região?
A dependência de sementes comerciais e de culturas destinadas ao mercado global reduz essa autonomia. Portugal, por exemplo, importa grande parte dos cereais que consome. Embora haja produção interna, a aposta em culturas mais lucrativas para exportação, como o olival intensivo, tem vindo a substituir produções mais diversificadas e ligadas ao consumo interno. O resultado? Mesmo produzindo muito, o país pode tornar-se vulnerável — dependente de mercados externos para garantir a sua própria alimentação básica.
Perder a diversidade alimentar
Outro efeito colateral da monocultura é a perda da diversidade alimentar. Ao apostarmos em poucas espécies e, dentro delas, em poucas variedades, estamos a perder sabores, texturas, cores — e, mais importante, estamos a perder nutrientes. As variedades locais, cultivadas há gerações, estão adaptadas a condições específicas do solo, do clima, da cultura local. Muitas têm maior resistência natural a pragas ou doenças. Outras requerem menos água ou cuidados.
No entanto, estas sementes estão a desaparecer e com elas também a sua diversidade genética. No prato, isso traduz-se em dietas mais monótonas, menos nutritivas e mais dependentes de suplementos ou alimentos processados.
Este fenómeno também tem implicações culturais profundas. A comida não é apenas sustento — é identidade, memória, ligação à terra. Quando perdemos a capacidade de cultivar e consumir os alimentos tradicionais da nossa região, perdemos também uma parte de quem somos.
Monotonia agrícola e as consequências na água e no solo
A monocultura não afeta apenas o que comemos — afeta também o planeta que nos alimenta. Quando o mesmo cultivo é repetido ano após ano no mesmo solo, sem rotação de culturas, o desgaste é inevitável. Os nutrientes específicos que a planta consome são retirados sem tempo para recuperação. O solo empobrece, torna-se compacto, perde vida. Para compensar, aumentam-se os fertilizantes químicos — que, por sua vez, podem envenenar lençóis freáticos e rios.
O uso intensivo de pesticidas e herbicidas, comum nestes sistemas, mata pragas, mas também abala ecossistemas inteiros. Abelhas, joaninhas, aves, microrganismos do solo — todos sofrem. Sem esses aliados naturais, os agricultores tornam-se ainda mais dependentes de químicos para manter a produção.
A água também paga a fatura. Culturas como o milho, o arroz ou até algumas variedades de amendoal exigem grandes quantidades de água. Em zonas já afetadas por secas recorrentes, como o interior de Portugal, isto levanta sérios alertas sobre a sustentabilidade deste modelo.
E depois há o impacto no clima. A agricultura industrial é uma das principais responsáveis pelas emissões de gases com efeito de estufa, seja pelo uso de fertilizantes nitrogenados, pela desflorestação associada à expansão agrícola, ou pelo transporte e refrigeração dos produtos.
Portugal: um território pequeno entre o modelo familiar e a agricultura intensiva.
Apesar de ser um país pequeno, Portugal vive estas tensões de forma clara. No Alentejo, a transformação da paisagem nos últimos anos é visível: onde antes havia montados e culturas de sequeiro, agora há fileiras intermináveis de olivais e amendoais intensivos. Muitos destes projetos são geridos por grandes empresas, com tecnologias avançadas, sistemas de irrigação gota-a-gota, tratores automatizados. Têm produtividade, sem dúvida. Mas a que custo?
Do outro lado, persiste uma rede resistente de agricultura familiar. Pequenos produtores, hortas comunitárias, mercados locais. Agricultores que guardam sementes tradicionais, que cultivam com respeito pelo ciclo da terra, que conhecem as suas plantas e o seu sabor. Estes guardiões da biodiversidade, porém, enfrentam dificuldades crescentes: falta de apoio, envelhecimento, pressão dos preços e da burocracia.
Ainda é possível mudar o futuro
A monocultura e o uso de sementes altamente produtivas podem ter ajudado a aumentar a produção alimentar global nas últimas décadas. Mas os seus efeitos secundários — a perda de soberania alimentar, a erosão genética, os impactos ambientais — estão a tornar-se cada vez mais evidentes.
É urgente repensar este modelo. Valorizar a diversidade, apoiar os agricultores locais, proteger os solos e a água, garantir que cada país possa alimentar a sua população de forma saudável e sustentável.
Em última análise, o que está em jogo não é apenas o futuro da agricultura, mas o futuro da nossa relação com a terra — e connosco próprios.
Ana Rajado