“Isto é o Bengala(desh)”, terá exclamado João de Silveira, fascinado diante da vastidão verde e líquida do delta do Ganges. E, sem o saber, aquele navegador português do século XVI reconhecia algo de familiar: a hospitalidade das gentes, o gosto pelas cores vivas, a força da fé e o engenho no comércio e no mar. Aquele pedaço longínquo do Oriente não lhe parecia estranho. Em Bengala, como em Portugal, o rio é pai e o mar é destino.
O encontro entre portugueses e bengaleses começou cedo, por volta de 1506, quando as naus lusas, vindas de Cochim e de Goa, se aventuraram até às costas orientais da Índia. João de Silveira, emissário de Afonso de Albuquerque, foi o primeiro europeu de quem há registo a navegar nas águas do que hoje é o Bangladesh. Dizia-se que o ar ali era doce e o povo afável, que as feiras fervilhavam de seda e de especiarias, e que as embarcações locais, de velas triangulares, lembravam as caravelas de além-mar.
Poucos anos depois, os portugueses fixaram-se em Chittagong, que chamaram Porto Grande de Bengala. Fundaram armazéns, construíram igrejas, ensinaram novas técnicas de navegação e aprenderam a língua local. Misturaram-se com a população, casaram, tiveram filhos. Nasceu uma comunidade mestiça, os firingis, cristãos de nomes lusos e corações bengaleses. Até hoje, em aldeias costeiras, há famílias Rozario, Gomes ou Pereira que guardam, como herança, orações em português antigo.
A convivência entre os dois povos gerou pontes inesperadas. A língua bengali acolheu dezenas de palavras portuguesas: almari, mesa, janala, botal. A fé católica encontrou espaço junto ao islão e ao hinduísmo, deixando igrejas e cruzes que ainda sobrevivem às monções. A música popular recolheu ecos de cânticos ocidentais, e o comércio fez circular tecidos, especiarias e ideias. Durante mais de um século, o português foi língua de trato, símbolo de confiança e curiosidade mútua.
Com o tempo, a presença portuguesa esbateu-se, mas o seu rasto nunca desapareceu. Quando o Bangladesh moderno nasceu, em 1971, os historiadores redescobriram essa ligação antiga, feita de encontros e mestiçagens. Hoje, Lisboa acolhe milhares de bengaleses que voltam a trazer à memória esse elo remoto. São comerciantes, estudantes e famílias que reinventam, no presente, o diálogo iniciado há quinhentos anos por João de Silveira.
A língua portuguesa é ensinada em Dhaka, o Instituto Camões promove intercâmbios culturais, e a comunidade bangladeshiana dá nova vida às ruas lisboetas. A história que começou nas margens do Ganges prolonga-se agora nas margens do Tejo.
“Isto é o Bengala(desh)”, disse o navegador, e tinha razão. Era Bengala, mas era também o reflexo longínquo de Portugal: o mesmo impulso de navegar, o mesmo dom de acolher e de aprender.
Paulo Freitas do Amaral
Professor, Historiador e Autor