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Mário Frota

Água como Direito Humano, o ‘corte’ como algo de insano…

30 de Outubro 2025

Finou-se, há dias, precocemente, uma antiga colaboradora da apDC, sociedade portuguesa de Direito do Consumo, Catarina de Albuquerque, de seu nome.

Catarina de Albuquerque foi a primeira Relatora Especial das Nações Unidas para os Direitos Humanos à Água e ao Saneamento entre 2008 e 2014 e cumpriu um papel decisivo no reconhecimento do direito à água potável e ao saneamento básico como Direito Humano Universal, pela Assembleia Geral da ONU em 2010.

Como corolário de uma tal consagração, jamais se deveria consentir a interrupção de fornecimento predial de água (o ‘corte’) a quem quer. Como, aliás, o fazem determinados países, que galgam a onda da civilização e do desenvolvimento.

Entre nós, porém, o Regulamento em vigor, editado pelo Regulador, prescreve imperativamente (art.º 54), sob a epígrafe “interrupção do serviço de abastecimento de água por facto imputável ao utilizador”:

“A [empresa ou serviço] pode (‘cortar’) o abastecimento de água, por motivos imputáveis ao consumidor (e equiparado)” quando:

Não for titular do contrato e não mostrar que está habilitado a usar o serviço;

Não for possível o acesso ao sistema para inspeção ou, determinadas as reparações, se não efectuarem no prazo fixado, desde que haja perigo de contaminação, poluição ou suspeita de fraude que o justifique;

Não assegurar as condições necessárias para a substituição do contador;

Se recusar a entrada no prédio para leitura, verificação, substituição ou levantamento do contador;

Se viciar o contador ou usar de fraude para acesso à água;

Se modificar o sistema e alterar as condições de fornecimento;

Se detectar ligações clandestinas ao sistema público;

Houver mora no pagamento da factura de fornecimento;

…”

No entanto, o ‘corte’ não pode ser feito às cegas em caso de não pagamento.

O tal Regulamento exige (art.º 104):

Pré-aviso escrito, por correio registado ou meio equivalente, com antecedência mínima de 20 dias da data do ‘corte’.

Do pré-aviso constarão:

Referência à(s) factura(s) em dívida e seu valor;

Meios para que o consumidor evite o ‘corte, com indicação exaustiva para o seu uso

E a retoma do fornecimento;

Valor da tarifa para a retoma.

Se invocada fundadamente a prescrição da dívida ou a caducidade da diferença do preço (que ocorre seis meses após a emissão da factura), não há lugar ao ‘corte’.

Se a empresa ou serviço incumprir tais obrigações e, ainda assim, proceder ao ‘corte’, fica em maus lençóis: terá não só de restabelecer a ligação, sem mais, como se obriga a indemnizar o consumidor (e indemnizar significa ‘ficar sem dano’) de todos os prejuízos materiais e morais que a situação lhe tiver acarretado.

Para tanto, o consumidor terá de fazer contas ao milímetro e apresentar à empresa ou serviço relapso o rol dos valores com que fora atingido pelos procedimentos ilegais observados. Como, por exemplo, o tempo de privação da água, as despesas de substituição, o tempo despendido para resolução do problema, o vexame por que passou por o terem por incumpridor, caloteiro e as mais despesas a que a situação o obrigou.

O facto é que temos notícia de casos de incumprimento absoluto de todas estas regras pelo fornecedor. O que terá de ter necessariamente consequências.

Um exemplo, de entre os mais, para além de não cumprir a exigência de correio registado (com aviso de recepção para maior garantia), muitas vezes propõe-se o fornecedor a cobrar a tarifa de reactivação sem ter sequer procedido ao ‘corte’… O que é patentemente um crime de especulação passível de prisão e multa. Tão só!

Os serviços públicos essenciais estão ao serviço dos cidadãos. As empresas que o prestam não podem usar do “seu poder” para, como “cão por vinha vindimada,” ultrapassarem as regras a que se sujeitam ou ignorarem-nas pura e simplesmente, como se lhes fosse lícito passar uma esponja sobre todo esse articulado porque “acima da lei”!

Mas o facto é que isso acontece. Acontece cada vez mais. E com toda a impunidade porque os consumidores ou não sabem como agir ou, pelo incómodo de o fazerem, não agem.

No caso, se não satisfizeram as indemnizações devidas, impor-se-á o recurso aos competentes tribunais de consumo. Para que cessem os atropelos.

Presidente emérito da apDC – DIREITO DO CONSUMO, Portugal