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Como a habitação se tornou um negócio inacessível

18 de Outubro 2025 Jornal Campeão: Como a habitação se tornou um negócio inacessível

Durante décadas, Portugal foi um país onde a casa própria era vista como um direito natural e essencial. No entanto, essa realidade tem vindo a desaparecer. Hoje, ter um tecto estável e acessível tornou-se um luxo para muitos. As rendas disparam, os salários estagnam, os despejos aumentam e as cidades mudam de mãos a uma velocidade assustadora.

Lisboa, Porto, Coimbra parecem cada vez mais feitas para turistas e investidores do que para os próprios habitantes. Mas esta transformação não é fruto do acaso — é o resultado de uma política económica e urbana que fez da habitação um produto financeiro, e do espaço urbano um território à venda ao melhor licitador.

 

O que é a especulação imobiliária?

Nos últimos anos, temos assistido à entrada massiva de fundos de investimento no mercado imobiliário português. Estes fundos compram prédios inteiros, muitas vezes degradados ou desocupados, remodelam-nos e colocam-nos no mercado a preços muito acima do que a maioria das pessoas pode pagar.

Na prática, a casa deixa de ser um lugar para viver e passa a ser um instrumento de lucro. Não interessa se está ocupada ou vazia, se serve alguém ou não. O que conta é a rentabilidade.

O mais preocupante? Grande parte destes fundos não são “entidades independentes”, como muitas vezes se pensa. São controlados pelos grandes bancos — Caixa Geral de Depósitos, Santander, Millennium BCP, BPI, entre outros.

Isto significa que os mesmos bancos que gerem as nossas contas e cobram comissões, são também os donos dos imóveis onde vivemos, ou que gostaríamos de poder viver.

 

A lógica do lucro acima de tudo

Quando a casa se transforma num produto de investimento, entra num mercado com regras próprias: quem tem mais capital dita as regras. Os grandes fundos conseguem comprar dezenas de imóveis de uma só vez, influenciando os preços e pressionando para cima o valor das rendas.

Não é por acaso que vemos apartamentos de 40 m² a custar mais de mil euros por mês em Lisboa, Porto ou Coimbra. Não é um erro de mercado. É o próprio mercado a funcionar como foi desenhado: para gerar lucro, não para garantir direitos.

Este processo tem um nome: especulação. E a especulação não se interessa por quem precisa de uma casa, mas sim por quem pode pagar mais.

 

Turismo e expulsão silenciosa

Ao mesmo tempo que os fundos tomam conta dos bairros, o turismo de massas e o Alojamento Local vieram agravar ainda mais a situação. Os centros das cidades foram transformados em zonas de passagem, onde os visitantes têm prioridade sobre os residentes.

Bairros históricos foram lentamente esvaziados dos seus moradores habituais. Famílias que viviam há décadas nos mesmos prédios viram-se confrontadas com despejos, aumentos incomportáveis de renda ou pura intimidação para abandonar a casa.

É uma expulsão silenciosa. As pessoas não são levadas à força, mas são empurradas economicamente para fora.

 

Salários baixos, rendas altas: a conta não bate certo

Portugal é um dos países com os salários mais baixos da Europa Ocidental. Mesmo com aumentos pontuais, a maioria das pessoas continua a viver com menos de 1.200€ líquidos por mês. Em contraste, uma renda média em Lisboa ou no Porto ultrapassa facilmente os 1.000€.

A equação é simples: gasta-se mais do que se ganha. E como não é possível viver sem casa, as famílias cortam noutras áreas — alimentação, saúde, educação, descanso. O peso da habitação está a empurrar milhares de pessoas para a pobreza e para a ansiedade constante.

Muitos jovens não conseguem sair da casa dos pais. Outros vivem em quartos partilhados, em arrendamentos precários ou em subarrendamento ilegal. Há trabalhadores que dormem em carros ou em pensões sobrelotadas e a falta de mão de obra qualificada – como professores e médicos, que não conseguem suportar os preços das rendas nas principais cidades – é um problema sem resolução á vista.

Este é o retrato de um país onde trabalhar já não garante uma vida digna.

 

 

O papel do Estado: regulador ou facilitador?

Perante este cenário, seria de esperar que o Estado interviesse com força para proteger os cidadãos. Mas não é isso que tem acontecido. Pelo contrário: muitas das políticas públicas têm favorecido os interesses privados em detrimento do bem comum.

Durante anos, os fundos imobiliários tiveram isenções fiscais altamente vantajosas. O Alojamento Local foi legalizado sem grandes limites. A regulação das rendas foi sendo enfraquecida. E os despejos tornaram-se mais fáceis.

Programas como o “Mais Habitação” foram apresentados como resposta à crise, mas mantiveram intocáveis os lucros dos grandes proprietários e dos bancos. A construção de habitação pública continua a ser tímida e lenta — e os imóveis do Estado continuam a ser vendidos em leilão.

Em vez de assumir um papel de defesa da população, o Estado parece estar mais preocupado em manter o mercado “atrativo para investidores” — mesmo que isso signifique tornar as cidades inabitáveis para quem vive e trabalha nelas.

 

As cidades estão a mudar de mãos

O que está a acontecer é uma mudança profunda na posse e no uso das cidades. Cada vez mais, quem manda no território urbano não são os cidadãos, mas sim os fundos e os bancos. São eles que decidem o que se constrói, onde se constrói, quem pode viver e quanto tem de pagar.

Isto tem consequências para todos: a cultura local desaparece, os laços comunitários enfraquecem, os transportes ficam sobrecarregados, os serviços públicos perdem eficácia. As cidades tornam-se máquinas de fazer dinheiro — mas só para alguns.

 

Movimentos e respostas populares

Apesar das dificuldades, têm surgido em todo o país movimentos e organizações que lutam por um modelo diferente de cidade e de habitação, e que têm denunciado abusos, apoiado pessoas ameaçadas de despejo e proposto políticas públicas mais justas.

Estes movimentos têm mostrado que há alternativas: controlo de rendas, penalização de casas vazias, investimento massivo em habitação pública, limites ao Alojamento Local, apoio à reabilitação para arrendamento acessível.

Mais do que reivindicar medidas pontuais, estas lutas exigem um novo modelo urbano, centrado nas pessoas e não nos lucros.

 

A crise da habitação em Portugal não é inevitável.

A crise da habitação em Portugal não é inevitável. É o resultado de escolhas políticas, económicas e financeiras que colocaram o lucro acima da vida. A banca e os fundos imobiliários tomaram conta das cidades — e o Estado tem falhado em proteger quem mais precisa.

Enquanto a casa continuar a ser tratada como um produto financeiro, haverá sempre mais casas vazias do que pessoas com casa. Enquanto os bairros forem avaliados pelo rendimento que podem gerar, e não pela qualidade de vida que proporcionam, a crise vai continuar.

Não basta construir mais. É preciso decidir para quem se constrói, quem decide e quem lucra. Porque Portugal arrisca-se a tornar-se um país onde a maioria só pode viver de passagem, sem estrutura e dignidade.

Ana Rajado

Publicado na edição semanal em papel do Campeão das Províncias de 16 de Outubro de 2025