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Autor de “Por Dentro do Chega”: “André Ventura criou um partido à sua imagem”

18 de Outubro 2025 Jornal Campeão: Autor de “Por Dentro do Chega”: “André Ventura criou um partido à sua imagem”

O jornalista Miguel Carvalho (Porto, 1970) construiu, ao longo de mais de três décadas de trabalho, um percurso associado à investigação e à abordagem de temas políticos e sociais sensíveis. Iniciou a carreira no Diário de Notícias, no qual trabalhou de 1989 até 1997, antes de se fixar na revista Visão, onde foi grande-repórter entre 1999 e 2023. As suas coberturas, centradas em violência política, redes de poder e memória histórica, consolidaram-no como uma das referências do Jornalismo português contemporâneo.

O vencedor dos Grande Prémio Gazeta de Jornalismo e do Prémio de Jornalismo de Excelência Vicente Jorge Silva, entre outros, publicou no último mês o livro Por Dentro do Chega – A face oculta da extrema-direita em Portugal (Objectiva), resultado de cinco anos de pesquisas em documentos internos, mensagens e actas partidárias, além de dezenas de entrevistas com actuais e antigos dirigentes e militantes. Nessa obra, radiografa o funcionamento interno do partido e seu líder, André Ventura.

A relação entre o escritor e um dos protagonistas de sua obra é antiga. Em Fevereiro de 2021, Ventura recorreu à sua página de Facebook para atacar Carvalho, após uma série de reportagens da Visão que expuseram o Chega. Nos anos seguintes, novas tensões vieram a público, tornando o jornalista persona non grata junto da cúpula partidária. O fio temático que atravessa toda a trajectória do autor é precisamente este: o estudo das redes, doutrinas e práticas da direita radical e da extrema-direita em Portugal, antes e depois de 1974, e a sua relação com as elites, as estratégias de comunicação e as dinâmicas de mobilização social.

Entre as palavras recorrentes no texto de mais de 700 páginas estão “redes sociais”, “família”, “populismo” e “televisão”. Em meio aos nomes surgem Nuno Afonso, fundador e estratega das primeiras campanhas, Luís Graça, presidente de mesa em convenções nacionais, Diogo Pacheco de Amorim, deputado com papel doutrinário e programático, Fernanda Marques Lopes, fundadora e ex-presidente do Conselho de Jurisdição, José Maria Matias, técnico ligado à estrutura interna, e Rita Matias, deputada da nova geração parlamentar.

A escolha de objectos de investigação fortemente polarizados, a exposição pessoal decorrente de ataques públicos e a persistência em publicar e debater o tema mesmo sob pressão revelam a coragem de Miguel Carvalho. Tais elementos sustentam a pertinência desta entrevista, realizada no Teatro da Cerca de São Bernardo, em Coimbra, na última semana – ocasião em que mais de uma centena de pessoas estiveram presentes para acompanhar o lançamento oficial do livro – e ajudam o leitor a situar o valor informativo, o alcance e as limitações deste testemunho.

A extrema-direita portuguesa: entrevista com Miguel Carvalho

Campeão das Províncias (CP): Na introdução do seu livro, o senhor destaca a hesitação mediática em nomear o fenómeno que ocorre em Portugal. Como define extrema-direita no país? Onde traça a fronteira entre o que identifica como extrema-direita, a direita radical e o conservadorismo já consolidados na Europa?

Miguel Carvalho (MC): Eu próprio evoluí nessa análise. É uma discussão académica à qual, em muitos lugares do mundo, não se chegou a conclusões fechadas. Também nos Estados Unidos, com o fenómeno Trump, alguns dos mais conceituados historiadores do fascismo foram ajustando posições: houve quem hesitasse em qualificar aquilo como neofascismo, muito depois de Madeleine Albright ter publicado um alerta sobre o fascismo (no livro Fascism: A Warning, publicado em 2018). Agora, com a segunda eleição de Trump, muitos consideram que os requisitos, pelo menos do neofascismo, começam a estar preenchidos.

No meu caso, a evolução foi idêntica. Considerei, até há pouco tempo, o Chega um partido de direita radical populista. Entendia que não preenchia um conjunto de requisitos para ser classificado como extrema-direita. Até porque existe, e sempre existiu, uma extrema-direita violenta, os Mários Machados desta vida e certos movimentos e organizações.

Até há relativamente pouco tempo, o próprio discurso do líder do Chega não fazia terra queimada da separação de poderes. Os ataques a instituições do regime democrático eram feitos por André Ventura de forma mais dissimulada e diplomática. De algum tempo para cá caiu uma máscara. O Chega atravessou várias fronteiras. Em entrevistas recentes, sobretudo televisivas, a separação de poderes tornou-se, para ele, irrelevante.

Não só na forma como fala da Assembleia da República, do papel do Parlamento na protecção das conquistas democráticas e da Constituição, mas também na forma como se dirige aos tribunais. Numa entrevista televisiva disse que lhe era irrelevante o que o Tribunal Constitucional decidisse, nomeadamente nos sucessivos acórdãos que assinalam falta de democraticidade interna no Chega desde 2020. O partido tem hoje órgãos ilegais, segundo o Tribunal, e ele desvaloriza ou rejeita esse papel.

É visível também no modo como se dirige aos adversários políticos, num estilo muito à Trump. Um exemplo: quando Isaltino Morais, presidente da Câmara de Oeiras, publicou um vídeo sobre ele, Ventura disse que, se fosse eleito primeiro-ministro, esse homem iria preso outra vez. O que antes era insinuado passou a ser dito em campo aberto.

CP: Esse foi o ponto de viragem para a sua classificação?

MC: Já havia outros sinais. Sem ser a extrema-direita violenta, observa-se no Chega um reforço da violência simbólica e um desrespeito total pela separação de poderes, o que o aproxima desse campo. Mas eu usava direita radical populista por outro motivo, e em parte mantenho esse sentimento: no livro procurei não confundir quem manda com quem vota. São realidades distintas. O Chega é um universo complexo, com origens diversas. Dizer que é tudo extrema-direita estigmatiza pessoas que não o são.

CP: Há também a procura de rótulos para radicalizar o eleitorado.

MC: Exactamente. A simplificação, muito habitual nas trincheiras políticas adversárias, do “é tudo fascista” ajudou a ampliar o fenómeno.

CP: Identifica continuidades históricas entre a velha extrema-direita portuguesa e as formas actuais? Há uma linha do tempo, ou este movimento surge como realidade nova?

MC: Tem uma componente disruptiva. É talvez menos nacionalista e menos devedor do antigo regime do que se supõe numa análise mais simplista. Mas é herdeiro – e o partido e a sua liderança reivindicam-no – dos derrotados do 25 de Abril, daquelas mesmas elites. Não tenho dúvidas.

Essas elites económicas, entre outras, nunca mudaram muito. Nos primeiros anos após a Revolução perderam algum poder, mas recuperaram-no e reconfiguraram-no ao longo da democracia. Chegamos ao início dos anos 80, quando foi criado o Tribunal Constitucional, e, com escolhas cirúrgicas dos seus juízes, permitiu-se o regresso dessa oligarquia, precisamente o que a Constituição pretendia evitar.

Entre 1985 e 1995, na década de governo do professor Cavaco Silva, o próprio Tribunal foi usado como arma para esboroar direitos sociais e económicos consagrados na Constituição. Essa oligarquia, derrotada em 1974 mas empenhada em recuperar e reconfigurar o regime a seu favor, está com o Chega. Pode estar também noutros partidos, que sempre apoiou, mas está com o Chega. Há nomes citados no livro. É, em parte, o sonho húmido dessa direita de franjas – por vezes violenta – e de certos setores da sociedade que nunca engoliram a Revolução.

CP: Em que medida a realidade portuguesa se distingue do que acontece internacionalmente, na Europa, por exemplo?

MC: O Chega é fruto de uma tendência europeia e tem semelhanças com diversos partidos que condicionam a agenda nos seus países, governem ou não. O que digo, conhecendo bem o partido por dentro, é que o Chega não tem, nem de perto nem de longe, o substrato ideológico que outros têm. Comparar o Chega com o Vox ou com o Fidesz não colhe. O Vox é herdeiro de tendências franquistas e de uma direita que se reconfigurou ideologicamente. Há trabalho doutrinário, goste-se ou não. Havia facções dispersas que não se reviam no PP e que se reconhecem hoje no Vox. Há elites intelectuais e económicas a trabalhar nisso há anos. O Chega não tem isso.
O último homem que tentou dar algum substrato ideológico ao Chega foi afastado. É conhecido e deu entrevista para o livro. Assisti a tentativas dele, em eventos do Chega: quando subia ao palco, metade da sala saía, era um bocejo. Os militantes vivem para a espuma dos dias, para o imediato e para o ruído, e sempre tiveram pouca paciência para figuras desse perfil.

CP: Ou seja, não há uma agenda ideológica consistente que o partido siga a fundo.

MC: Sim. No livro há testemunhos de antigos dirigentes que trabalhavam a mecânica da presença mediática do partido. Dizem que alguns projectos de lei que apareciam na Assembleia eram decididos a ouvir a rádio de manhã: percebiam o tema quente e anunciavam um projecto que muitas vezes nem chegava a dar entrada. Bastava o anúncio para ocupar o espaço mediático. Em cinco anos de investigação não encontrei provas de reflexão ideológica constante que consolide esse substrato. Há um meio teórico? Sim. Mas, na prática, a agenda, a mensagem e o programa são ditados pelo ruído do dia, com as velhas ideias do neoliberalismo e do capitalismo ideológico.

CP: Palavras como economia, moral e família apareceram tanto quanto extrema-direita ou corrupção no seu livro. Foi uma escolha consciente a preponderância desses termos ou apenas um espelho do discurso partidário?

MC: Fui aprendendo ao longo do caminho. Tinha algumas molduras no início e fui abandonando-as. Uma coisa não mudou: interessava-me o fenómeno mais do que a figura que o lidera. Acho que esse foi também o erro no combate político: os ataques focaram o líder, esquecendo que os eleitores estavam lá por muitas razões. O contacto com centenas de militantes e eleitores, muitos de base, deu-me pistas para ir mais por uns lados do que por outros. Desde cedo percebi – e disse há pouco – que não havia intenção de ter um programa discutido, um projecto partidário estruturado. Mesmo resgatando a agenda típica do capitalismo selvagem, não se acrescentou reflexão. Há muitos nacionalistas no Chega, gente com passado em movimentos identitários. A chamada direita ideológica, com figuras como Jaime Nogueira Pinto, reflecte sobre a nova direita no mundo, mas mesmo essa influência não se fez sentir.

Há pessoas que orbitam a organização, estão relativamente próximas, mas não militam. O que observei foi um partido virado para o dia-a-dia: como fazer barulho, ganhar tracção na internet e produzir indignação. Esse foi o objectivo inicial, e consolidou-se. Com a nossa colaboração – de nós, jornalistas –, pulverizou-se o papel que tínhamos como mediadores do debate público. Além disso, se um repórter contacta a direcção de comunicação do Chega no decurso de uma matéria, em mais de noventa por cento dos casos não obtém resposta. Fecham-se sobre si mesmos. Não lhes interessa. Interessa-lhes as redes sociais e a televisão sensacionalista.

CP: O senhor aborda também a centralização do partido na figura do líder. As zonas de opacidade que encontrou na estrutura organizacional e financeira são reflexo dessa concentração?

MC: Do ponto de vista organizativo, o Chega foi pensado, desde sempre, como projecto pessoal de poder. Não há dúvidas. O partido é hoje menos livre do que no início. Os acórdãos do Tribunal Constitucional confirmam-no. As práticas quotidianas, os congressos e as mudanças estruturais foram no sentido de concentrar poder no líder.

CP: Isso resulta de uma megalomania?

MC: Não sei se lhe chamaria megalomania. Vários fundadores, que estiveram muito tempo ao lado de André Ventura e discutiram o primeiro programa, dizem – e está no livro – que ele não acredita em cinquenta por cento do que diz, no mínimo. Encontrou um nicho de “mercado” e explora-o.

No plano financeiro, o que se pode provar – e há testemunhos no livro – é que existem aspectos de financiamento já sinalizados em relatórios da entidade de contas do Tribunal Constitucional. Há vários relatórios com hipóteses de financiamento ilegal. No livro há testemunhos de quem lidou com essas questões a explicar como o dinheiro entrava, incluindo dinheiro não registado.

Se é uma ramificação internacional de outros movimentos, não posso provar. Suspeito – e há indícios no livro – de iniciativas conjuntas articuladas sobretudo do Brasil, da Espanha e da Hungria.

CP: Ficou algo de fora do livro por não ter conseguido investigar o suficiente?

MC: Daria para fazer um livrinho de 80 ou 100 páginas só com extras. Mas são coisas que não posso provar. O Chega atraiu pessoas e práticas sórdidas. Não tenho dúvidas, entretanto, de que certas coisas são verdade pelo que pude alcançar.

CP: Em uma entrevista na última semana, o senhor disse que, se boa parte dos eleitores soubesse o que o partido fez em seu nome, não votaria.

MC: Sim. Há um Portugal de sofá. Pessoas que nunca participaram em manifestações ou acções cívicas, que não militaram em associações ou sindicatos. O que conhecem da política é o que está na televisão. E, na televisão, André Ventura aparece como o homem que os defende – ou, pelo menos, o que berra às elites aquilo que elas gostariam de dizer e não conseguem – como Trump faz na América.

CP: O que o desvincularia da classe política da qual ele faz parte.

MC: Exacto. E as pessoas ignoram que essa elite está toda dentro do Chega. Seria importante que esse Portugal de sofá tivesse uma noção mínima de como funcionam os partidos por dentro – e das práticas do Chega. Jamais acreditariam que é o partido certo para defender a sua causa, se a tivessem.

CP: O livro foi lançado há algumas semanas. Que feedback recebeu de leitores, colegas e personagens? Há algo que reescreveria, incluiria ou removeria?

MC: Não. Há coisas previsíveis e outras meio irreais. Está a entrar na gráfica a quinta edição em menos de um mês. Para Portugal é significativo. Isso não quer dizer que o livro esteja a ser lido pela generalidade do universo eleitoral do Chega. Mas aconteceu algo que não esperava: pessoas que estiveram ou estão no Chega, ou que votaram no Chega, enviam-me fotografias do livro pousado na mesa do café para mostrar que o estão a ler. Fazem-no publicamente nos seus perfis ou por mensagem privada: “Fiz questão de comprar o livro. Quero lê-lo com espírito crítico para aprender sobre o meu partido e depois darei a minha opinião.” Também há pessoas – ou bots – nas redes que me acusam de tudo e mais alguma coisa e, ao mesmo tempo, partilham o livro, acabando por “aplicar o seu próprio veneno”. As reacções têm sido óptimas.

CP: Em alguns trechos, fala de pressões, processos e intimidações. Recebeu ameaças?

MC: Não comparo o que vivi com o que outros colegas viveram na cobertura diária do Chega, em campanhas eleitorais ou na produção de documentários. Houve gente com filhos ameaçados e houve agressões. Eu não passei por isso. O que me fizeram foi uma violência simbólica de outro nível: um documento interno destinado a ser usado nas redes para me descredibilizar, e ao Pedro Coelho (também jornalista especializado em investigação), que nunca veio a público, e uma ou outra chamada anónima. O momento mais impactante foi, em 2021, quando o próprio André Ventura colocou a minha cara no Facebook a acusar-me de mentiras. Guardei capturas de ecrã de comentários do género “é preciso saber onde este tipo mora”.

Nada comparável com outros casos, mas o grau de intimidação tem aumentado junto dos jornalistas. Não quero imaginar o que acontecerá se o Chega chegar ao poder. Em 2020 isso parecia distopia; hoje já não. Deixo, porém, uma ressalva: este livro não existiria sem a colaboração de muitos militantes e eleitores do Chega que me respeitam. Alguns deles me enviam postais de Natal. Nunca confundi planos: muitos não concordam comigo enquanto cidadão, mas sempre me trataram com respeito. Tirando a direcção, fui geralmente respeitado no universo militante.

CP: Quem é André Ventura?

MC: Um mitómano. Criou um partido à sua imagem; apresenta-se como novo D. Sebastião que resolve todos os problemas, quando, na maioria dos casos, os agrava. Muita gente à sua volta – e eu também – não acredita que ele acredite em cinquenta por cento do que diz. Encontrou um nicho e vai explorá-lo até onde puder.

CP: Depois de tudo o que viu, ouviu e investigou, qual é hoje o maior risco se o Chega alcançar o poder?

MC: Creio que estamos perante essa possibilidade nas próximas eleições. No livro, descrevo práticas de gravações ilegais e clandestinas de militantes, ocorridas durante, pelo menos, dois anos. Sempre que alguém era visto como obstáculo às ambições internas, arranjava-se forma de o gravar a dizer barbaridades sobre a direcção e usava-se essa gravação para eliminar o adversário. Essa foi uma prática quotidiana, que circulou às dezenas.

Imagine-se um partido com esse modus operandi a chegar ao Governo e a aplicá-lo no Ministério da Administração Interna – que lida com informação reservada e confidencial, com os serviços de informações e, em parte, com as forças de segurança, por exemplo. Seria um Big Brother. Esse e outros cenários trágicos são os únicos que consigo vislumbrar.

Entrevista de Marcelo Domingues Tomaz

Publicada na edição semanal em papel do Campeão das Províncias de 16 de Outubro de 2025