A história de Emanuel Humberto Casas de Melo cruza-se, há mais de três décadas, com a da Expofacic, como se o seu nome e o do certame partilhassem um destino comum. Reconhecido em 2024 como “Personalidade Expofacic”, recebeu nesse ano, da Comissão Organizadora, uma homenagem singela mas carregada de significado, que, mais do que formalidade, se assumiu como gesto de gratidão. Não foi um ponto de chegada — muito menos um adeus. Foi, isso sim, a confirmação pública de uma entrega longa, silenciosa e ininterrupta. Uma entrega feita de trabalho, de visão e, sobretudo, de afecto.
Mas quem é, afinal, este homem a quem chamam, com indisfarçada ternura, o “senhor Expofacic”? A resposta não se esgota na sua ligação ao certame, embora esta seja, de facto, o fio condutor mais visível. É preciso recuar, como ele próprio fez ao longo da entrevista que concedeu ao Campeão das Províncias, até às memórias de infância para começar a compreender o que o moldou.
Memórias que não se apagam
Cresceu em Cantanhede, num tempo em que se reconhecia, nas pequenas coisas, o privilégio de ter oportunidades. Considerava-se, então, um “menino rico” — não no sentido material, como fez questão de frisar, mas pela fortuna das vivências e da educação que lhe foram proporcionadas.
Recordou, com emoção contida, os dias em que aprendeu a ler na Misericórdia de Cantanhede. Curiosamente, as suas primeiras mestres foram crianças acolhidas naquela instituição, jovens desvalidas que ali se encontravam por falta de condições das suas famílias. Esses momentos, confidenciou, ficaram gravados de forma indelével na memória. Sempre que reencontra alguém ligado a essas histórias — filhos, sobrinhos, netos —, sente necessidade de perguntar por eles. Alguns já partiram, reconheceu, mas outros ainda caminham por aí, discretamente, como testemunhas da dignidade dos tempos difíceis.
A entrada na escola primária trouxe-lhe outro tipo de desafios. Considerava-se, segundo as palavras que partilhou, um verdadeiro hiperactivo — termo que hoje se usa com leveza, mas que na época raramente era compreendido. Descreveria, mais tarde, a infância como um período feliz e estruturante, em que nunca lhe faltou o essencial — nem no afecto, nem na orientação.
A infância, feita de contrastes e de encontros, preparou-o para uma vida em que o trabalho com os outros seria o centro. Talvez por isso, mais do que qualquer cargo, lhe faça sentido a palavra “serviço”. E foi nesse espírito que atravessou as décadas seguintes.
Aprender pelo exemplo
Desde tenra idade, Emanuel Humberto Casas de Melo demonstrava uma inclinação natural para as actividades organizativas e para o envolvimento na comunidade. Recorda que, ainda criança, interrogava a mãe sobre a ausência do pai, cuja resposta era quase sempre a mesma: “Está nos Bombeiros, está nos Marialvas, está na Feira de São Mateus…”. Como qualquer menino curioso, sonhava em acompanhar o pai nessas incursões, apesar da rotina ser, na época, bastante rígida, sem que a criança pudesse comandar a agenda familiar como acontece hoje. Quando o pai o autorizava, aceitou o convite com entusiasmo; quando não, seguia-o na mesma, movido pela curiosidade e pelo desejo de pertencer àquele mundo em movimento.
Foi, de facto, no ambiente familiar que encontrou as primeiras raízes do seu amor pelo associativismo, uma paixão que herdou do pai, figura marcante no movimento associativo local e homem de influência nos bastidores do Partido Popular Democrático (PPD). Casas de Melo reconhece que não acompanhou o envolvimento político-partidário do progenitor, mas assimilou, desde cedo, a força do compromisso com a comunidade e a importância do trabalho associativo. Quando questionado sobre quem o inspirou, não hesitou em apontar o pai como o seu maior exemplo, tanto como homem de família, como referência moral e cívica.
Um amor inabalável pela terra natal
Quanto a Cantanhede, a cidade onde nasceu e viveu a maior parte da vida, a sua ligação é profunda e identitária. Embora tenha passado algum tempo em Tomar durante o serviço militar, nunca sentiu vontade de se desligar da sua terra natal. Cantanhede não é apenas um local geográfico; é um projecto de vida e um lugar onde se reconhece plenamente. A sua educação privilegiou-lhe a abertura ao mundo e, com apenas 16 anos, sentiu-se impelido a descobrir Lisboa por si próprio — uma incursão breve, mas marcante, guiado pelo “cheiro” do Tejo e pela pulsação da capital.
Também a avó materna, natural de Coimbra, desempenhou um papel importante no seu percurso. Frequentava regularmente a cidade, especialmente a zona de Santa Clara, onde morava a avó, e dali se aproximava do Estádio Universitário, despertando um amor duradouro pelo clube Académica, a única “mulher” a quem confessa fidelidade absoluta, para além da sua família.
Quando questionado sobre a possibilidade de abandonar Cantanhede, a resposta foi peremptória: nunca pensou nisso, nem por um momento. Mesmo quando surgiram oportunidades para sair, recusou-as, consciente de que qualquer caminho que o levasse para fora da sua terra seria, muito provavelmente, definitivo.
Por outro lado, revelou que nutria um sonho aparentemente distante do associativismo: ser cameraman, inspirado pela sua paixão amadora pelo super 8 e pelas filmagens caseiras. Durante uma das suas viagens a Lisboa, chegou a visitar o Lumiar para entender o que seria necessário para concretizar esse objectivo. Chegou mesmo a ser-lhe oferecida uma oportunidade concreta, com alojamento garantido por um ano, para seguir essa carreira na capital. No entanto, voltou a recusar, preferindo manter-se ligado a Cantanhede, ao movimento associativo e ao seu projecto de vida local.
O convite que mudou o rumo
Assim, o percurso de Casas de Melo é também uma história de escolhas conscientes, de prioridades claras e de uma lealdade inabalável à sua terra e à comunidade. Quando se fala da evolução de Cantanhede, Emanuel Casas de Melo não hesita em destacar a transformação profunda que a cidade experimentou ao longo das últimas décadas. Esta mudança, frisa, deve-se, acima de tudo, a um conjunto de factores — mas principalmente a pessoas. Pessoas que, com dedicação e visão, ajudaram a moldar o presente da cidade.
Mas a sua reflexão não se limita ao universo político. Casas de Melo sublinha que, fora da esfera partidária, houve empresários e figuras do comércio e da indústria que foram essenciais para o desenvolvimento económico local.
Quanto à sua entrada para a Câmara Municipal, ocorreu em Junho de 1986. Lembra-se do dia inaugural com nitidez, embora com alguma singularidade. Na altura, já era um dirigente associativo reconhecido a nível nacional, sobretudo no campo do associativismo juvenil, onde se destacava pela energia, pela capacidade de articulação e pelo trabalho nos bastidores. Apesar de não possuir uma formação académica superior, a sua experiência prática conferia-lhe uma influência notável. Foi precisamente essa postura, que conciliava discrição e determinação, que levou a Câmara a convidá-lo para integrar os seus quadros.
Um compromisso inabalável com a Câmara
Recorda a abordagem do então Presidente Albano Pais de Sousa numa entrega de prémios de uma prova de ciclismo, que o chamou de lado e lhe pediu que fosse à Câmara para uma conversa. Na altura, Emanuel sentiu que aquela proposta era uma oportunidade irrecusável. De imediato, assumiu um compromisso consigo mesmo: a partir daquele momento, a Câmara Municipal passaria a ser a sua prioridade máxima — um compromisso que manteve ao longo de quase 40 anos de carreira dedicada à instituição e à cidade.
Ao longo dos anos, Emanuel Casas de Melo passou por várias áreas dentro da Câmara Municipal de Cantanhede: do desporto à cultura, do protocolo à gestão. Questionado sobre como se adaptou a tantas funções diferentes, respondeu com a humildade e determinação que o caracterizam.
«Como disse, a Câmara esteve sempre primeiro do que eu», afirmou com convicção. Dentro desse princípio, aceitou tudo o que lhe foi proposto, mesmo que por vezes isso implicasse esforços pessoais significativos. «Aceitei ser “padeiro” na Câmara Municipal, como costumo dizer — sabendo que isso implicava trabalhar de noite, ao sábado, ao domingo.» Esse compromisso mantém-no até hoje, e ele não se queixa, pois tudo o que conquistou foi fruto da sua própria vontade e entrega. Esse empenho foi decisivo para desenvolver uma disponibilidade exemplar, da qual saiu sempre altamente beneficiado.
Emanuel sublinha que o seu percurso foi sempre apartidário. «Costumo dizer que este meu percurso nunca precisou de passar pela sede do partido que elegeu o presidente da Câmara. Foi sempre um percurso apartidário.» A sua estratégia foi estar sempre na retaguarda, mas presente onde fosse necessário.
O poder dos pequenos momentos
Para Emanuel, a motivação não esteve apenas no reconhecimento, mas nos pequenos momentos de realização: «Muitas vezes, um minuto transforma-se num ano — porque naquele minuto em que consegui fazer acontecer uma ideia, um projecto, aquilo que desejei, isso deu-me alento para estar um ano inteiro a trabalhar, sem hesitação».
Apesar de todo o empenho e dedicação, manteve o equilíbrio entre os seus interesses pessoais e os do município, respeitando sempre os outros e preservando a sua própria identidade. E comenta com ironia e leveza alguns dos julgamentos que ouviu ao longo do tempo: «Felizmente, contrariamente ao que muitos dizem — e isto dá-me até algum gozo — há quem diga que eu sou um escravo. Não sou! Nada disso».
Trabalhar com vários presidentes da Câmara ao longo das décadas proporcionou a Emanuel Casas de Melo uma perspectiva única sobre a liderança e o impacto de cada um no município. Quando questionado sobre as características que mais o marcaram em cada mandato, não hesitou em afirmar que todos deixaram uma marca indelével na sua vida pessoal e profissional.
No entanto, destacou três pessoas que foram particularmente significativas para si: o Dr. Jorge Catarino, o Professor João Moura e a Dra. Helena Teodósio. «O Dr. Jorge Catarino teve a ousadia, fora da estrutura mais emblemática dos serviços municipais, de me confiar um cargo que normalmente seria reservado a pessoas da sua entourage política. E depois o Professor João Moura e a Dra. Helena Teodósio, que também confiaram em mim — alguém que não vinha da política deles, nem da sua estrutura».
Foi essa confiança, sustentada na lealdade e no trabalho dedicado, que lhe permitiu superar barreiras e consolidar a sua posição dentro do município. «Confiaram porque viram lealdade em mim. E isso é algo que nunca esquecerei».
A franqueza como marca pessoal
Não esconde que é uma pessoa exigente e com um carácter forte. «Eu reconheço que sou uma pessoa difícil. Sou Virgem, e os Virgens têm aquela mania de que tudo tem de ser como querem. Mas não pode ser. E ultimamente tenho-me vindo a habituar a uma coisa: não é como eu quero… mas tem de ser como as pessoas precisam».
Confessa ainda que, quando gosta, gosta verdadeiramente, mas quando não gosta, é complicado: «Tenho um problema — um grave problema até. É que, quando gosto, gosto mesmo. Mas quando não gosto, é uma chatice. E sei que isso não é correcto».
A honestidade com que se posiciona é uma constante na sua vida. Ao longo de 40 anos de serviço público, nunca sentiu que lhe faltasse cumprir o seu dever: «Nunca me deitei uma única noite com a sensação de que devia ter feito uma coisa e não fiz. Nunca». Essa integridade pessoal e profissional é para ele fundamental.
A sua franqueza vai até às coisas que não tolera: «Tenho três palavras que resumem muita coisa em mim: não suporto ingratidões. Tenho uma dificuldade enorme, mas mesmo enorme, em lidar com ingratidões. Não consigo».
Essa postura firme e coerente, que o torna uma figura incontornável em Cantanhede, assenta numa base de respeito e lealdade que ele exige, mas também oferece, à comunidade que serve. «A ingratidão, para mim, é insuportável. Tenho que lidar com ela, claro — porque a vida obriga —, mas nunca usei aquilo que eu sou ou aquilo que quero em prejuízo de quem quer que fosse, aqui ou noutro lado qualquer».
Expofacic: um compromisso de vida e estratégia
Para além do percurso profissional, a ligação de Emanuel Humberto Casas de Melo à Expofacic revela-se um testemunho vivo da persistência e da estratégia cuidadosa que pautaram a sua vida. O seu compromisso nunca foi impulsivo ou baseado em busca de protagonismo — antes, uma firme convicção de estar presente quando e onde realmente fosse necessário.
Contou-nos que a sua entrada efectiva na Comissão Organizadora da Expofacic só aconteceu duas semanas antes do início do certame, após um convite quase inesperado do vereador da altura, Espírito Santo Lopes. Estava de férias quando foi chamado para dar apoio directo à organização do evento. Essa disponibilidade súbita não foi um acaso, mas sim o resultado de anos a fio de uma postura discreta, mas atenta.
Desde jovem, Emanuel já respirava feiras e eventos, acompanhando o pai na Feira de São Mateus e nas Feiras das Indústrias em Lisboa, criando assim uma ligação precoce a estas dinâmicas que moldaram a sua identidade. Entrar para a Câmara Municipal de Cantanhede foi, para ele, uma extensão natural desse interesse, onde aprofundou a experiência, visitando feiras internacionais e aprendendo a importância do trabalho rigoroso por trás do sucesso de cada certame.
Compromisso até aos 71 anos: uma escolha consciente
A sua estratégia na Expofacic é a mesma que seguiu na sua carreira: ser verdadeiro, manter-se fiel a si próprio e às suas convicções, sem cair em jogos de favores ou compromissos que atentem contra a sua integridade. Para ele, a lealdade, a gratidão e a humildade são os pilares que sustentam não só o trabalho, mas a convivência e o progresso.
Para o futuro, o seu desejo é que a feira continue a ser uma referência de união, trabalho e inovação em Cantanhede, um palco onde as gerações vindouras saibam honrar a herança construída com esforço, paixão e responsabilidade.
Enquanto sentir que é útil e bem recebido, promete continuar a arregaçar as mangas e a contribuir para que o “senhor Expofacic” mantenha a chama acesa, recordando sempre que “ninguém” me tira a marca “Expofacic”.
Quando questionado como será a Expofacic sem Casas de Melo, responde de forma clara: “Vai ser a mesma Expofacic. A feira continua, resiliente, dinâmica, e capaz de reinventar-se a cada ano. A sua força ultrapassa nomes e rostos, porque é feita por uma equipa, por uma comunidade que respira e se entrega à causa”.
Mas Casas de Melo sem a Expofacic? Essa será uma história diferente. Pela primeira vez, quando esse dia chegar, vai viver a feira como visitante, não como organizador. Não como aquele que a acompanha todos os dias, os 365 dias do ano, na mente e no coração. A experiência será nova e, confessa, não sabe qual será a sua reacção. Afinal, a Expofacic sempre foi parte de si.
Questionado sobre a decisão de continuar em funções públicas até aos 71 anos, responde com a mesma clareza e humildade que o caracterizam.
Saber estar e saber afastar-se com coerência
“Revejo-me num conjunto de pessoas que, silenciosas e discretas, fizeram de Cantanhede a terra que somos. Sinto-me bem, estou na minha praia e, por gratidão, aceitei o convite da Senhora Presidente”. O compromisso assumido é firme: “Ficar disponível para aquilo que entenderem, até ao minuto em que já não fizer sentido. Amigos na mesma, e só tenho a agradecer.”
E assim fica a marca de Emanuel Humberto Casas de Melo: um homem de convicções firmes, de exigência para consigo e para com os outros, que construiu o seu percurso com dedicação, paixão e um sentido profundo de justiça. Um homem que sabe a hora de estar presente e a hora de afastar-se, sempre guiado pela sua coerência, pela sua gratidão e pelo respeito — ainda que rigoroso — que dedica a quem verdadeiramente merece.
Joana Alvim