No coração da Figueira da Foz, o Museu Municipal Santos Rocha acolhe, até 21 de Junho, uma exposição que transcende os limites da arte e se afirma como testemunho vivo de um tempo ferido. Intitulada “Diálogos… Sobre Cultura e Conflitos”, a mostra integra o programa “Maio é Museu!” — que assinala os 131 anos da instituição — e reúne obras de seis mulheres artistas ucranianas que, forçadas a deixar o seu país pela guerra, encontraram em Portugal um refúgio e na criação artística uma forma de resistir.
Sob o lema “Espírito Inquebrável de Uma Nação Invicta”, esta exposição não apenas revela a riqueza cultural da Ucrânia, como convida à escuta atenta das histórias, dores e esperanças de quem viveu o trauma da guerra e da migração. Mais do que uma proposta estética, é um exercício de empatia, memória e diálogo entre tempos, geografias e sensibilidades.
Um grito que ecoa entre pincéis, câmaras e tecidos
As autoras desta exposição — Tetiana Rybytska, Vik Shpetna, Maria Markarian, Natali Zagori, Alina Kryvoviaz e Hanna Aleinikova — expressam-se através de linguagens diversas como a pintura, a tapeçaria, a cerâmica, os objectos têxteis e a fotografia a preto e branco. Unidas pela experiência do exílio e por uma sensibilidade aguçada pela dor, apresentam obras que são, nas palavras de Maria Markarian, “ao mesmo tempo um grito, uma ferida e um remédio, uma memória e um aviso”.
Para Rybytska, a pintura tornou-se a sua forma de gritar quando já não há palavras suficientes. A sua série “Nação Inquebrável” é uma ode à força do povo ucraniano, marcada por cores densas, traços determinados e uma emoção crua que irrompe da tela. “A arte é a minha voz. Nasceu da dor, mas também da fé. Cura a alma e dá força para continuar”, diz.
Vik Shpetna traz tapeçarias e peças cerâmicas que incorporam técnicas tradicionais ucranianas, com composições simbólicas e texturas que remetem a um tempo anterior ao conflito — como se cada ponto, cada forma, quisesse resgatar algo perdido. “Mesmo quando tudo à volta está em ruínas, a arte oferece a oportunidade de reunir os pedaços de nós mesmos. Ainda estou viva. Ainda posso respirar”, afirma.
Já Maria Markarian, herdeira de uma linhagem artística ligada à estamparia têxtil, apresenta obras feitas com técnicas tradicionais passadas pela sua família. Para si, a arte é um “acto valioso e insubstituível de cura interior”, uma forma de lidar com a dor sem a camuflar, e de a transformar em algo partilhável.
Também Alina Kryvoviaz vê na criação artística uma missão: a de comunicar a experiência do conflito a quem nunca o viveu. “Não é difícil partilhar a minha arte com quem não viveu a guerra. Sinto que é a minha missão. Muito mais difícil é criar no exílio, com o peso da culpa de ter sobrevivido”, confessa.
Entre o aqui e o lá: viver no limiar
Todas estas mulheres vivem hoje na Figueira da Foz, onde encontraram acolhimento, mas nenhuma esquece o país que deixaram. Essa tensão entre o “lá” e o “aqui” atravessa todas as obras da exposição e marca profundamente os testemunhos das artistas. “Nem completamente aqui, nem totalmente lá. Às vezes dá força: vês mais, sentes mais profundamente. Outras vezes — esgota”, descreve Maria Markarian, num registo íntimo que também encontramos nos retratos fotográficos de Hanna Aleinikova.
As fotografias de Aleinikova captam o quotidiano de famílias ucranianas radicadas na Figueira, com um olhar terno mas firme. São imagens silenciosas, mas densas, como que a convidar à escuta. Famílias inteiras a reaprender o verbo “viver”, crianças que brincam à sombra de uma memória de destruição, mulheres que seguram nos olhos a distância entre dois mundos.
Esse sentimento é partilhado por Natali Zagori, para quem a arte é uma forma de “dar voz ao indizível”. As suas pinturas revelam fragmentos de paisagens interiores, onde a cor oscila entre o desespero e a esperança. “Não é possível regressar à vida anterior. Mas é possível criar novas possibilidades, e a arte é uma delas.”
O museu como lugar de escuta e reparação
A exposição “Diálogos…” ganha outra camada de significado ao incluir obras de oito artistas que, durante a Segunda Guerra Mundial, também encontraram refúgio na Figueira da Foz. Nomes como Ivan Sors, Wanda Ostrowska, Ruth F. Manes, Max Braumann, Anne Marie Jauss, Eugène Colson, Marcelle Galopin e Arpad Szenes dão corpo a esta ponte entre tempos e exílios, mostrando como a cidade foi — e continua a ser — território de acolhimento e reconstrução de vidas.
Anabela Bento, coordenadora do Museu Municipal Santos Rocha, sublinha a pertinência da exposição num tempo em que a guerra voltou a impor-se como realidade na Europa. “Todos os artistas presentes nesta exposição têm um denominador comum — a Figueira da Foz como refúgio. Vidas em suspenso que vislumbraram um futuro. A arte torna-se aqui uma ponte entre culturas, mas também entre passados e presentes feridos”, afirma.
Esta vocação humanista do Museu acompanha-o desde a sua fundação e revela-se agora com uma nitidez particularmente comovente. Para Anabela Bento, “a exposição dá-nos oportunidade de sentir a arte como lugar de acolhimento. É também um acto político e poético: estas mulheres transformam o trauma em criação, a perda em memória viva. Estamos perante arte que fala, com coragem, da condição humana em tempos sombrios”.
A arte como testemunho e resistência
A exposição não oferece respostas fáceis. Pelo contrário, desafia o visitante a permanecer no desconforto, a escutar com o coração e a imaginar o que é viver com a guerra no corpo e na memória. Para Maria Markarian, “a arte pode ser cortante, desconfortável, inquietante — e é justamente aí que reside a sua força. O papel do artista é ser não apenas observador, mas testemunha e participante”.
O convite é, pois, à escuta activa. “Gostaria que esta mostra apagasse a fronteira entre ‘lá’ e ‘aqui’, entre ‘a dor deles’ e ‘a nossa paz’”, declara Markarian, expressando um desejo que ultrapassa a linguagem da exposição e se inscreve no gesto ético da partilha.
Apesar da dor, há nas palavras das artistas uma gratidão profunda pela forma como foram recebidas na cidade. “Portugal começou a soar para mim como ‘lar’”, partilha Vik Shpetna. E Tetiana Rybytska acrescenta: “Este é o início de uma conversa. A arte pode unir. As pessoas aproximam-se, querem compreender melhor. Isso é precioso”.
O que fica, no fim, é um apelo. Não ao esquecimento, mas à memória. À empatia. À escuta.
Um sussurro contra o esquecimento
“Diálogos… Sobre Cultura e Conflitos” não é apenas uma mostra artística. É um território de escuta. Um sussurro contra o esquecimento. Uma galeria onde cada obra é um fragmento de humanidade que resiste.
Como afirma Shpetna, “desejo muito que em cada um de nós viva a fé — viva, verdadeira, não fingida. Que guardemos esperança. Porque só esse apoio — em si mesmo, na memória, nos significados — nos dá forças para não quebrar.”
Esta exposição é, assim, mais do que uma visita cultural. É um encontro com o que há de mais humano: a capacidade de criar, de recordar, de continuar — mesmo em tempos sombrios.
A exposição “Diálogos… Sobre Cultura e Conflitos” está patente ao público no Museu Municipal Santos Rocha até 21 de Junho, com entrada gratuita. Pode ser visitada de terça a sexta-feira, das 9h30 às 17h00, e aos sábados, das 14h00 às 19h00.
Joana Alvim