Coimbra  17 de Abril de 2025 | Director: Lino Vinhal

Semanário no Papel - Diário Online

 

Mario Vargas Llosa: O Nobel da Literatura que queria ser lembrado pela escrita

14 de Abril 2025 Jornal Campeão: Mario Vargas Llosa: O Nobel da Literatura que queria ser lembrado pela escrita

O escritor peruano Mario Vargas Llosa, que morreu esta segunda-feira em Lima, no Peru, aos 89 anos, confessou um dia que gostaria de ser lembrado pela escrita e pelo trabalho, apesar do seu engajamento politico e social, que transparece na obra.

Nascido em Arequipa, em 28 de Março de 1936, Jorge Mario Pedro Vargas Llosa, que venceu o Prémio Nobel da Literatura em 2010, foi também político, jornalista, ensaísta e professor universitário.

Vargas Llosa é um dos nomes mais importantes das letras latino-americanas e firmou-se como um dos principais escritores da sua geração, ao ponto de alguns críticos considerarem que teve um impacto e uma audiência internacional como nenhum outro do ‘boom’ da América Latina.

Mas não foi apenas pela literatura que ficou conhecido. Desde cedo começou a envolver-se politicamente, primeiro como apoiante de Fidel Castro e da revolução cubana, depois como defensor da democracia liberal, mais conservadora, capitalista, chegando mesmo a concorrer à presidência do seu país, em 1990, por uma coligação de centro-direita, contra Alberto Fujimori.

A política é um tema constante na sua obra, que se apresenta quase como um manifesto de crítica social das hierarquias sociais e raciais.

No discurso de aceitação do Nobel, Mario Vargas Llosa reconheceu ser difícil a um escritor latino-americano evitar a política, porque os problemas são mais vastos do que isso, são sociais, cívicos e morais, razão por que “a literatura latino-americana está impregnada de preocupações políticas” que, em muitos casos, são mais preocupações morais”, disse na altura o autor peruano.

“Sou basicamente um escritor e gostava de ser lembrado – se for lembrado – pela minha escrita e pelo meu trabalho. (…) Quando escrevo literatura, acho que as ideias políticas são secundárias. Acho que a literatura compreende um horizonte mais vasto da experiência humana”, afirmou.

O júri do Prémio Nobel justificou a escolha de Vargas Llosa por ser detentor de uma escrita que faz a “cartografia das estruturas do poder” e de uma obra que revela “imagens mordazes da resistência, revolta e dos fracassos do indivíduo”.

O principal tema dos seus livros é a luta pela liberdade individual, na realidade opressiva do Peru.

Mario Vargas Llosa iniciou-se na escrita influenciado pelo existencialismo de Jean-Paul Sartre e a sua fama foi logo projetada com o seu segundo romance, “A cidade e os cães”, editado em 1963, a que se somaram outros sucessos como “A casa verde” (1966), o monumental “Conversa n’A Catedral” (1969), “A tia Júlia e o escrevedor” (1977) e “A festa do chibo” (2000).

“A casa verde”, uma das suas obras de inspiração autobiográfica, revela influências de William Faulkner, e narra a vida das personagens de um bordel, conhecido precisamente como A Casa Verde.

“Conversa n’A Catedral” foi publicado originalmente em quatro volumes e aborda algumas fases da sociedade peruana sob a ditadura de Odria, em 1950, através da conversa do filho de um ministro com um motorista, num bar chamado “La Catedral”.

Este romance está construído de forma original, com recurso a uma sofisticada técnica narrativa que alterna o diálogo entre os dois homens, com cenas do passado, praticamente sem fazer transições.

Em 1981, publicou “A guerra do fim do mundo”, sobre a Guerra de Canudos, livro que dedicou ao escritor brasileiro Euclides da Cunha, autor de “Os Sertões”.

Cedo revelou uma versatilidade estilística que o habilitou a escrever vários géneros literários.

Além de romances, que incluem comédia, mistério, história e política, Mario Vargas Llosa escreveu também teatro, ensaio, memórias, crítica literária e textos jornalísticos, colaborando com jornais como o espanhol El País, o brasileiro O Estadão e a Agência France Presse.

Algumas das suas obras literárias foram adaptadas ao cinema, como é o caso de “A tia Júlia e o escrevedor”, “Pantaleão e as visitadoras” e “A festa do chibo”.

Filho de pais que se separaram ao fim de cinco meses, Mario Vargas Llosa passou a primeira infância na Bolívia, longe do pai, que só viria a conhecer aos 10 anos.

Foi apenas quando o avô obteve um cargo político em Piura, no norte do Peru, que a mãe do escritor decidiu voltar ao país para viver naquela cidade.

Aos 14 anos, ingressou como interno num colégio militar, em La Perla, experiência que inspiraria o romance “A cidade e os cães”.

Aos 17 anos, entrou para a universidade, em Lima, onde estudou Letras e Direito, e dois anos depois casou-se com Julia Urquidi, irmã da mulher do seu tio materno.

Graças a uma bolsa, foi estudar para Espanha, onde obteve, na Universidade Complutense de Madrid, o doutoramento em Filosofia e Letras, mudando-se depois para França, país onde viveu alguns anos.

Em 1964, divorciou-se e casou novamente, desta vez com uma prima, Patrícia Llosa, que viria a ser a mãe dos seus três filhos.

A sua passagem de simpatizante do socialismo para a ala centro-direita rendeu-lhe algumas críticas e polémica, mas Mario Vargas Llosa sempre se afirmou como alguém contra as correntes autoritárias.

Na altura de receber o prémio da Academia Sueca, o escritor citou como exemplo do “currículo” de democrata, a sua oposição a ditaduras, tanto de esquerda, como no caso de Cuba, como de direita, caso do Chile de Augusto Pinochet.

Em 2021, viu o seu nome envolvido no caso dos Panamá Papers, em que, segundo investigações jornalísticas, o escritor teria criado uma empresa num paraíso fiscal.

O confronto com o escritor Gabriel García Márquez, que chegou a “vias de facto” em 1976, data assumida para o termo da amizade entre ambos, não é estranho ao seu percurso através do espectro político.

Vargas Llosa, no entanto, nunca pôs em causa o valor da obra do Nobel colombiano da literatura, acabando por publicar a sua tese de doutoramento, “García Márquez – História de um deicídio”, um elogio a “Cem Anos de Solidão”, ao seu autor, e uma declaração de amor à literatura.

“Escrever romances é um ato de rebelião contra a realidade, contra Deus, contra a criação de Deus que é a realidade. É uma tentativa de correção, mudança ou abolição da realidade real, da sua substituição pela realidade fictícia que o romancista cria”, afirma Vargas Llosa, na obra.

Além do Nobel da Literatura, Mario Vargas Llosa foi distinguido, ao longo da sua carreira literária, com vários outros prémios como o Rómulo Gallegos (1967), Princesa das Astúrias (1986), Planeta (1993), Miguel de Cervantes (1994), Jerusalém (1995), National Book Critics Circle Award (1997), PEN/Nabokov (2002) e Prémio Mundial Cino Del Duca (2008).

Recebeu vários graus de doutor ‘Honoris Causa’, atribuídos por universidades da Europa, América e Ásia.

Foi ainda membro da Academia Peruana de Línguas desde 1977, da Real Academia Española (RAE) desde 1994, e fez parte da Academia Brasileira de Letras desde 2014.

Em 2023, ingressou na Academia Francesa, tornando-se o primeiro escritor de língua espanhola a entrar na instituição dos imortais, sem nunca ter escrito nada em francês.

Foi também uma excepção no que respeita à idade, já que a instituição centenária encarregada de guardar a língua de Molière só aceita membros com menos de 75 anos.

Depois de vários anos a viver na Europa, no início dos anos 2000 o escritor fixou residência em Madrid, onde teve por companheira Isabel Preysler. Em 2011, o rei concedeu-lhe o título nobiliárquico de marquês, pela sua “extraordinária contribuição (…), apreciada universalmente, à literatura e à língua espanhola”.

Vargas Llosa detinha a cidadania espanhola desde 1993, sem nunca renunciar à peruana. Nesse ano, publicou “Peixe na Água”, no qual conjugou a experiência da campanha.