Figura incontornável da sociedade portuguesa, António Marinho e Pinto construiu um percurso singular, marcado pela defesa intransigente dos seus ideais e pela frontalidade das suas posições. Advogado de formação, destacou-se como Bastonário da Ordem dos Advogados entre 2008 e 2013, período em que protagonizou debates acesos sobre o estado da Justiça em Portugal. Antes disso, fez carreira no jornalismo, tendo passado por órgãos como a ANOP, a Lusa e o Expresso. O seu espírito combativo levou-o também à política, onde assumiu o cargo de eurodeputado em 2014 e fundou o Partido Democrático Republicano. Mas mais do que cargos, Marinho e Pinto é reconhecido pela sua voz crítica e pela forma desassombrada com que analisa o país.
Campeão das Províncias [CP]: A sua vida agora é mais calma?
Marinho e Pinto [MP]: A minha vida agora é como eu sempre quis que fosse. Tenho o privilégio de fazer o que gosto, nomeadamente, cultivar a terra, algo que sempre fez parte de mim. As plantações não são muito abundantes, mas isso deve-se ao facto de não utilizar pesticidas nem adubos químicos. Prefiro que sejam naturais para garantir a boa qualidade das colheitas. Sempre tive o sonho de produzir o que consumo e consumir o que produzo. Infelizmente, ainda não produzo tudo o que consumo, mas consumo tudo o que produzo.
No fundo, sempre fui um agricultor. A advocacia e o jornalismo foram, de certa forma, hobbies que me ocuparam durante meio século, mas a minha verdadeira vocação esteve sempre na terra. Essa sempre foi a essência da minha vida. Nunca perdi a ligação à mãe-terra que o sol fecunda. A agricultura era a base de subsistência dos meus antepassados. Hoje vivemos tempos diferentes, mas acredito que estamos a caminhar para um período em que teremos de recuperar modos de vida antigos, que se tornarão novamente actuais e, acima de tudo, necessários à nossa sobrevivência.
[CP]: Sempre foi uma pessoa inquieta, com essa necessidade de contestar?
[MP]: Esta característica, de ser contestatário, não se refere apenas ao íntimo da pessoa, mas à posição que se ocupa na história do seu tempo, ao papel do cidadão em uma época concreta. Na minha juventude ser contestatário era uma necessidade cívica, um imperativo ético. Vivíamos numa ditadura, sufocados por uma repressão terrível, onde a contestação era um acto de coragem, mas também de sobrevivência moral. Eu pertencia a uma minoria e recordo bem o ambiente daquela época. Os textos na imprensa, antes de serem publicados, tinham que passar pela aprovação de um censor e a polícia reprimia constantemente qualquer manifestação de liberdade. Para além disso, havia uma polícia política secreta com uma rede imensa de bufos (informadores) que se infiltravam nas nossas vidas, como amigos, para depois nos denunciar. Tudo isto fazia com que qualquer pessoa minimamente esclarecida, que soubesse ver o que acontecia à sua volta, tivesse de ser contestatária.
Foi um tempo de grandes contradições: enquanto na Europa floresciam democracias e direitos fundamentais, Portugal estava agarrado a um império que já só existia apenas no imaginário de alguns, especialmente dos mais velhos. Portugal travava três guerras em África – Guiné, Angola e Moçambique – que, além de dilacerarem o país, destruíam as perspectivas de sobrevivência do próprio regime. Enquanto outros países já tinham feito a descolonização, Portugal continuava as suas colónias a clamar “isto é nosso”, ignorando as realidades dos povos africanos. A consciência do povo português só começou a despertar realmente para esse problema quando os cadáveres dos nossos soldados começaram a chegar.
No meio disso tudo, como cidadão minimamente atento, não podia deixar de questionar esse regime político. Tinha 20 anos quando fui preso pela PIDE, em Coimbra, e passei cerca de dois meses no Forte de Caxias. Não contestávamos esse estado de coisas por prazer, mas por uma necessidade imperiosa de mudar o rumo da história.
[CP]: Como é que os seus pais viam essas suas lutas?
[MP]: Quando um jovem assume o seu lugar na história do seu tempo, inevitavelmente entra em conflito com aquilo que é mais antigo, com aquilo que está estabelecido. Este conflito não deve ser confundido com desprezo pelos mais velhos, algo que, de resto, eu sou hoje. Sou um septuagenário, e compreendo bem que, ao longo da vida, somos todos confrontados com as mudanças e com as dificuldades de as aceitar. No entanto, o que se passa é que, quando alguém deseja mudar, naturalmente entra em conflito com aqueles que querem manter as coisas como estão.
Esse conflito não era exclusivo da minha família; era comum a toda uma geração. Fui parte de uma geração que lutou por um regime político diferente, por uma forma de fazer política mais justa e menos cínica, onde a política não fosse apenas uma ferramenta de poder para os que já dominavam o país. Esse confronto com o “velho” era, de certa forma, um reflexo de um movimento mais amplo, que procurava mudar as coisas a nível social, político e cultural.
Embora houvesse esse conflito, quero deixar claro que nunca diminuiu, nem por um instante, o respeito e a admiração que sempre tive pelos meus pais. Eles, apesar de terem visões diferentes, tinham um carinho profundo por mim, tal como eu tinha por eles. Esse amor e respeito mútuos nunca se alteraram, apesar das nossas divergências. A família, para mim, sempre foi um alicerce fundamental. Cresci numa família com valores de união, respeito e amor, que continuam a guiar as minhas relações familiares com os meus filhos e netos.
A família tem uma função histórica e social muito importante. A unidade moral da família, a sua unidade espiritual, garante aos seus membros a força necessária para enfrentar as adversidades da vida. Vivemos numa época em que a luta pela sobrevivência é enorme. A competitividade é desenfreada e sem limites. A família, nesse contexto, torna-se uma âncora essencial, uma forma de os seus membros se protegerem e sobreviverem melhor neste mundo tão violento.
[CP]: Como vê a actual situação do país?
[MP]: Vejo com grande apreensão e pessimismo. A direcção que o país e a própria Europa têm tomado revela fragilidade. A União Europeia deu passos maiores do que as pernas, especialmente ao avançar de um espaço de unidade económica (mercado único) para uma unidade política sem considerar as realidades históricas e culturais dos seus provos. A ideia de um grande estado federal europeu (união política) não pode ser construída apenas com dinheiro. O dinheiro perdeu a sua força agregadora perante as identidades nacionais demasiado fortes e profundas para serem ignoradas.
Hoje a UE agarra-se desesperadamente a uma guerra externa, que ela própria fomentou, para tentar salvar a sua unidade interna. Isso é o reflexo de falta de liderança. A Europa não tem hoje grandes líderes como teve no pós-guerra. O que vemos atualmente são líderes medíocres, sem lucidez, sem imaginação, sem capacidade de liderança, que não percebem que a UE, tal como a conhecemos, pode desabar de um momento para o outro, mais pelas suas contradições internas do que por qualquer ameaça exterior. Ao contrário que julgam os líderes da UE, a guerra na Ucrânia não vai reforçar a unidade europeia – bem pelo contrário.
A guerra é sempre o resultado de falhas diplomáticas, da recusa ou da incapacidade de compreender e de dialogar com o outro. Quando não se consegue ou não se quer compreender o outro, o recurso à violência torna-se inevitável. Estamos a viver uma pulsão de guerra que é cíclica na Europa e que nos devia recordar os momentos mais trágicos da história europeia. Parece que ninguém quer ver as consequências da insensatez dos nossos líderes e do seu heroísmo patético. A União Europeia está a enfrentar desafios históricos, e a ameaça de uma escalada militar, com a possibilidade de envolver armas nucleares, é algo que não podemos ignorar.
[CP]: Podemos dizer que não augura nada de bom?
[MP]: Temo que possamos estar à beira de um conflito generalizado na Europa com o perigo de ela voltar a ser destroçada como aconteceu por duas vezes no século passado. Os povos do continente europeu estão em guerra civil entre si há milhares de anos. A guerra é uma característica genética da Europa. Os povos europeus espalharam a guerra, a conquista e o genocídio por toda o planeta. Só os espanhóis destruíram duas civilizações no continente americano, não falando já do que os anglo-saxões fizeram aos povos da América do Norte e da Índia. As guerras no nosso continente sempre tiveram um impacto devastador e a História ensina-nos que a Rússia, apesar de propagandeada como um inimigo, esteve do lado certo nos dois grandes conflitos europeus do século XX. Foi a União soviética que derrotou o nazismo. É um facto muitas vezes ignorado que 80% das tropas hitlerianas foram mobilizadas para o território soviético e que a União Soviética pagou um preço elevadíssimo nessa guerra, com cerca de 27 milhões de mortos. O desembarque na Normandia só ocorreu em 1944, depois de os soviéticos já terem vencido as batalhas decisivas, como em Estalinegrado e Leningrado. A mesquinhez política dos atuais dirigentes europeus revela-se bem neste episódio: aqueles que libertaram o campo de Auschwitz foram impedidos de participar agora nas comemorações do 80.º aniversário dessa libertação.
Não sou um simpatizante da Rússia, mas vejo com preocupação o rumo dos acontecimentos. A Europa, tal como está, não se encontra preparada para um conflito com a Rússia. Durante décadas, acolheu-se oportunisticamente à proteção militar dos Estados Unidos, o que lhe permitiu canalizar recursos para o desenvolvimento económico e social, mas descuidando a sua defesa. Essa dependência conduziu à fraqueza em que nos encontramos. Acontece que os Estados Unidos parecem já não estar dispostos a continuar a gastar quantias astronómicas para defender uma Europa que se transformou num dos seus principais concorrentes económicos. A situação é absurda: os estados membros da UE têm orçamentos de defesa cujo total é cerca de quatro vezes superior ao orçamento de defesa da Federação Russa e, no entanto, têm uma capacidade de defesa muito inferior.
O grande problema da Europa, repito, reside na mediocridade dos seus dirigentes. A Europa não tem uma elite dirigente à altura dos atuais desafios Históricos e geopolíticos.
Por outro lado, o modelo de democracia liberal conduziu ao enfraquecimento das democracias europeias, ao empobrecimento dos seus povos e ao enriquecimento cada vez mais escandaloso das suas elites financeiras. Essa é uma mistura explosiva que vai rebentar em breve. Infelizmente, a democracia europeia entrou na fase final da sua decadência.
Lino Vinhal/Joana Alvim