Coimbra  27 de Março de 2025 | Director: Lino Vinhal

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Alfredo Mota e a Medicina como uma Arte

9 de Março 2025 Jornal Campeão: Alfredo Mota e a Medicina como uma Arte

Professor Jubilado, o Prof. Alfredo Mota foi Director do Serviço de Urologia e Transplantação Renal do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, de 2003 a 2016. Nesta conversa falou-se de Medicina, de Ciência, de Cultura, de Torga, da geração de ouro das tertúlias de Coimbra, da Académica e de muito mais que não cabe numa página de jornal, assim se provando que “quem só sabe de Medicina nem de Medicina sabe”, o que não é, claramente, o caso do entrevistado desta edição.

 

Campeão das Províncias [CP]: Hoje temos connosco uma figura a quem Coimbra e o país muito devem, e deve sobretudo o saber, a ciência médica. Pelas suas mãos passaram milhares de doentes, muitos dos quais viveram muitos mais anos graças à intervenção do Professor Alfredo Mota. É uma honra ter entre nós alguém que esteve na equipa pioneira de outro grande médico, o Professor Linhares Furtado, no arranque destes transplantes… foi assim?

Alfredo Mota [(AM]: Sim, tenho realmente de começar realmente por referir o meu Mestre, o Professor Linhares Furtado (LF), uma das principais referências de Coimbra dos últimos 50 anos. LF elevou a medicina coimbrã, os HUC e a  Faculdade de Medicina a um patamar que nunca tinha atingido. O Prof. Celestino da Costa, catedrático de cirurgia em Lisboa escreveu: “Linhares Furtado é o melhor cirurgião português que conheci na minha época”. Foi ele que iniciou todos transplantes de órgãos abdominais, e por isso foi justamente considerado o Pai da Transplantação portuguesa. A sua obra aí está para o demonstrar e devo dizer, com alguma mágoa, que Coimbra e o país ainda não o reconheceram como deviam.

 

(CP]: Nessa altura foi difícil avançar, porque havia aí uma parte legal também complicada…

[AM): O 1º transplante renal (TR) foi de dador vivo, realizado por LF em 1969. Depois, só se reiniciaram os TR com a dinâmica que têm hoje, em 1980 com os transplantes de rins de dadores falecidos. Para realizar este tipo de transplantes havia, contudo, um sério problema, e isso pouca gente sabe, que era a questão de colher órgãos em dadores falecidos. Para isso, era preciso fazer o diagnóstico de morte cerebral. Trata-se de uma situação em que o cérebro está morto mas o coração e outros órgãos ainda funcionam, é como se tivéssemos um corpo sem cabeça mas que ainda tem órgãos funcionantes. Como se calcula era uma situação complicada e melindrosa que gerava muita resistência e incompreensão: então se o coração bate, está morto? E se os rins trabalham, está morto? Era complicado, porque ninguém fazia o diagnóstico de morte cerebral e sem isso não havia orgãos para transplante. Foi o LF, que com base em critérios científicos e na experiência dos países mais avançados, se pôs à frente desta causa e assim conseguiu que o nosso país acompanhasse o progresso científico. O diagnóstico cabia fundamentalmente aos neurologistas, aos neurocirurgiões e aos intensivistas – que nessa altura eram os médicos de reanimação. LF conseguiu sensibilizar o seu colega, o Professor Carrington da Costa, que era o Director do Serviço de Reanimação, e assim se avançou na transplantação do rim. Só depois disso é que Lisboa começou também a fazê-los e o Porto um pouco mais tarde. O que LF conseguiu com este avanço em Coimbra, foi extraordinário!

 

[CP]: A certa altura, o transplante renal tornou-se, digamos, uma prática corrente e com um grau de sucesso apreciável.

[AM]: Sim, foi uma equipa que, além de LF e de mim próprio juntou outros colaboradores, como os Drs. Carlos Alberto Bastos, António Roseiro, Francisco Rolo, Vítor Dias, e mais tarde o Prof. Arnaldo Figueiredo. A estes cirurgiões juntou-se o Dr, Luís Borges, responsável pela Unidade de Diálise e o nefrologista Dr. Cândido Ferreira. Algum tempo depois foi o próprio Serviço de Nefrologia do Professor Adelino Marques e depois dirigido pelo Dr. Mário Campos que passou a fazer parte da equipa de transplante ranal contribuindo, significativamente, para o seu desenvolvimento. A partir de 1990/91 o Professor Linhares Furtado entregou-me a responsabilidade dos transplantes renais (TR) para se dedicar ao transplante hepático. Conseguimos desde o inicio, graças a esta equipa extraordinária, atingir a liderança da TR em Portugal.  Fomos desde então o Serviço que fazia mais transplantes por ano, mais do que os de Lisboa e do Porto. Chegámos a bater um recorde, em 2007, com 170 transplantes, o que naquela altura era um número brutal. O segundo Serviço depois de nós, que foi o do Hospital de Santo António do Porto, ficou-se por cerca de metade. Depois, em 2003, o Professor Linhares Furtado jubilou-se, eu fiquei então a dirigir o Serviço de Urologia e de Transplantação Renal dos HUC. Nós éramos, além de um centro que fazia muitos transplantes, um centro que tinha muito bons resultados, mesmo a nível internacional.

 

[CP]: É um privilégio pertencer a uma geração que mudou tanta coisa…

[AM]: Sim, como eu disse na minha lição de jubilação, houve três pessoas que me marcaram muito na minha vida. Primeiro foi o meu pai, que foi também urologista aqui em Coimbra, Ângelo Mota, que trabalhou durante cerca de 25 anos com o Professor Zamith, que era o Director do Serviço de Urologia, de quem foi o braço direito e depois ainda trabalhou com o Professor Linhares Furtado. O meu pai, para além de me ensinar as coisas básicas da vida, deu-me uma lição do que era ser um médico humanista, acolhedor e respeitador dos doentes e dos colegas. Aquilo a que hoje talvez se designe por um “Aristocrata da Medicina”, não no sentido dos títulos mas no sentido da educação, do civismo, do altruísmo e da solidariedade. Depois foi o Professor Linhares Furtado que fez de mim um cirurgião transplantador. E o terceiro foi Miguel Torga, que me fez compreender melhor a arte médica, a importância da cultura e a prática da cidadania.

 

[CP]: Para si também é um prazer falar de Miguel Torga.

[AM]: Conheci bem Miguel Torga com quem tive em determinada altura um convívio quase diário. Aproximaram-nos o Douro onde tenho as minhas raízes perto da sua terra e a medicina. Torga era aquilo a que eu chamo um escritor médico, não era um médico escritor, porque Torga antes de ser médico já era escritor. Miguel Torga teve uma infância difícil, os pais não tinham possibilidades económicas para o pôr a estudar. Ainda chegou a passar no Seminário de Lamego, onde esteve cerca de um ano, e depois um tio lá o levou para o Brasil e foi esse tio que, ao fim de uns quatro ou cinco anos, se propôs pagar-lhe os estudos em Coimbra. Torga agarrou essa oportunidade com as duas mãos, fez o Liceu em três anos, depois ingressou na Faculdade de Medicina e tornou-se médico. Foi ainda estudante que começou a escrever. Torga era um homem com muitas qualidades, muito culto, que leu centenas e centenas de livros, fez 62 viagens culturais ao estrangeiro, mas que, como todos os seres humanos, também tinha os seus defeitos. Apontam-lhe alguma vaidade, apontam-lhe alguma intolerância na discussão das ideias, mas era um homem excepcionalmente humano, mesmo na sua prática médica.

A Medicina é uma actividade que conjuga a arte e a ciência. Hipócrates já dizia “exercerei a minha arte com pureza e honestidade”, e as pessoas perguntam “mas que arte?”. Pois bem, a arte médica. A Medicina primeiro é uma arte e depois é uma ciência. William Osler um dos pais da medicina dizia: ”A prática da medicina é uma arte baseada na ciência”. E acrescentava: “o médico, antes de conhecer a doença que o homem tem, tem de conhecer o homem que tem a doença”. Só conhecendo o ser humano que tem à sua frente o médico pode compreendê-lo e tratá-lo. Para isso é preciso tempo e diálogo o que hoje, com a pressão das listas de espera, é mais difícil. Para exercer a sua arte médica em toda a plenitude o médico deve ser culto o que Torga era e muito!

 

[CP]: Tanta tecnologia afastou o médico do doente…

[AM]: A tecnologia é sem dúvida um grande progresso mas os numerosos exames com que o doente se faz acompanhar tiram espaço áquela intimidade que se deve estabelecer entre o médico e o doente. Nos serviços públicos a pressão é para despachar doentes para reduzir as listas de espera. A humanização do acto médico pressupõe o contacto pessoal e quase sempre físico com o doente. São as tais mãos a que João Lobo Antunes se refere como a mão que apalpa e a mão que consola e no caso do cirurgião a mão que corta com o bisturi. Esta arte médica não pode ser perdida até porque muitas vezes a única coisa que temos para dar ao doente é a esperança, O sofrimento físico é combatido com medicamentos, para combater o sofrimento psíquico é preciso embrulhá-los em compaixão evafecto..

 

[CP]: A tecnologia não dispensa a humanização, mas qualquer dia até já se faz o transplante renal sem um médico entrar na sala operatória, não é? Manda-se para lá um robô…

[AM]: As pessoas julgam que se carrega nos botões e o robô opera, mas não. O cirurgião é que opera com o robô. Agora o robô, pelas suas capacidades permite uma precisão cirúrgica muito mais segura do que só as mãos do médico. Por exemplo, uma cirurgia do cancro da próstata, em que é preciso preservar estruturas, como os nervos da erecção, para o doente não ficar impotente sexualmente, com o robô é mais fácil.

 

[CP]: Na tripla função do Hospital, em curar o doente, fazer investigação e ensinar, parece que o SNS no inicio estava melhor organizado do que está hoje…

[AM]: O Serviço Nacional de Saúde (SNS) começou no início da década de 70. Até aí, a maioria dos médicos dessa época ou trabalhava em hospitais que eram das Misericórdias, ou em clinicas privadas. Mesmo nos hospitais universitários não havia lugares para os médicos, havia lugares para os médicos da Faculdade, professores e assistentes. Por estas razões, os médicos juntavam-se em grupos para criarem as suas clínicas privadas onde internavam e tratavam os seus doentes particulares. Foi assim que o meu pai com outros colegas fundou a Casa de Saúde de Santa Filomena hoje Sanfil, onde ia operar os seus doentes privados. O mesmo se passava na Clínica de Montes Claros, Clínica da Sofia, São José, do Dr. Montezuma e do Professor Bacalhau. Após o advento do SNS (Dr. António Arnaut e Prof. Mário Mendes) muitos hospitais foram nacionalizados e qualquer português doente passou a ter a acesso gratuito ao hospital. Depois surgiram os centros de saúde e as convenções com privados o que possibilitou uma melhor organização do SNS que, contudo, com o aumento extraordinário dos doentes atinge, por vezes, situações de rotura. No caso dos médicos a funcionalização da sua actividade quase acabou com a profissão liberal.

ENTREVISTA: Lino Vinhal / Andreia Gouveia

Versão completa após publicada na edição em papel do Campeão das Províncias de 6 de Março de 2025