Coimbra  27 de Março de 2025 | Director: Lino Vinhal

Semanário no Papel - Diário Online

 

Diniz Freitas

A crise da democracia liberal

8 de Março 2025

1º. «A democracia liberal é o sistema político que melhor pode salvaguardar a dignidade da pessoa humana e melhor pode permitir que ela floresça». Assim se exprimiu o «Apelo de Praga», em 2017. Assim se pronunciou igualmente Karl Popper. Ao explicar por que razão considerava que a nossa sociedade aberta, «o novo mundo», é a «melhor» Popper remetia para «os modelos e valores que recebemos por intermédio do Cristianismo, da Grécia e da Terra Santa – de Sócrates e do Antigo e Novo Testamento». Segundo Leo Strauss, «a civilização ocidental tem duas raízes: a Bíblia e a filosofia Grega». Há cerca de trinta anos, Fukuyama vaticinou o «fim da história», e julgou vislumbrar «o ponto final da evolução ideológica da humanidade e a universalização da democracia liberal ocidental como expressão final do governo humano».

2º. No entanto, perpassa uma sensação de crise, de desgaste e de cansaço da chamada civilização ocidental e da cultura política democrática liberal a ela argamassada. O «Apelo de Praga», ainda que recuse o «fim do Ocidente», sublinhou «o recuo geopolítico do Ocidente, o ressurgimento de forças políticas autoritárias, a erosão dos valores democráticos, a violência terrorista do fundamentalismo islâmico, bem como os crescentes desafios provenientes não só dos apologistas do iliberalismo e da xenofobia, mas também de intelectuais relativistas que negam que qualquer forma de governo pode ser defendida como superior a qualquer outra».

3º. Fascinada e seduzida pela melopeia do positivismo, do racionalismo e do cientismo, e profanada e intoxicada pela sofistaria e alogia do relativismo e do niilismo, a democracia liberal tem testemunhado, desgastada e inerme, o progressivo desmoronamento das suas muralhas greco-judaico-cristãs, e por isso o colapso dos seus valores seminais e matriciais. Perdeu a alma, a sua couraça moral, a sua cultura e as suas convicções. Assiste, letárgica e exausta, à desconstrução da família, um dos pilares de uma sociedade decente, à desvalorização da paternidade e da  maternidade, à redução da natalidade, porque as crianças são mais peso que esperança, e muitas nem sabem quem são os pais, à indistinção entre o bem e o mal, entre o sagrado e o profano, entre homem e mulher, entre casamento e outras formas de parceria sexual, entre erotismo e pornografia.

4º. Com James Kurth, penso que está a acontecer uma dolorosa fractura civilizacional no seio do mundo cultural europeu, entre a visão greco-judaico-cristã e a secularização liberal. Há uma laceração interna que urge ser reparada. A principal razão da crise da democracia liberal radica justamente no crepúsculo dos seus alicerces morais. Ora, como sublinha Ratzinger, a fundamentação do valor humano deixou de ser progressivamente clara, ao longo do processo de secularização. É essencial o retorno às raízes, ou seja, a democracia liberal não pode ser moralmente neutra, porque deixa de ser sustentável.

5º.Esta crise da democracia liberal europeia facilitou a decisão do nazi Putin e de sua sinistra quadrilha, de agredir brutalmente a Ucrânia para a concretização de um sonho delirante, imperialista e czarista. Este celerado apostou nas fragilidades da civilização ocidental, que bem conhecia, para desferir um golpe traiçoeiro, terrorista e monstruoso.

Nesta luta entre a liberdade e a opressão, entre a democracia liberal e a tirania, entre a dignidade do ser humano ou o caminho da servidão, é imperiosa a ajuda vigorosa e permanente ao povo ucraniano, mas é também urgente que a democracia liberal europeia se liberte de lideranças frouxas, pusilânimes, conformadas, dóceis e aterrorizadas; e da tenrura e candura de um pacifismo angelical, porque a «paz perpétua» de Kant infelizmente é um mito; e de uma secularização materialista ao serviço de um capitalismo «de rapina», que corrompe a sua identidade, a sua essência e o seu património espiritual; e de fanáticos renegados, de nostálgicos do messianismo soviético e da barbárie «woke»; e da dependência, designadamente energética, de potências totalitárias. Enfim, é a hora da sociedade ocidental se refundar, à luz dos princípios e dos alicerces matriciais, para poder afirmar-se como a melhor opção política na defesa da dignidade humana e da liberdade. Para poder pulverizar as ditaduras e afirmar convictamente, com Wiston Churchill, que nunca se renderá.

PS: O notável discurso democrático de JD Vance, actual vice -presidente americano, proferido recentemente em Munique, compagina-se com o teor do meu texto. Uma valente cacetada nos eurocratas de Bruxelas.

(*) Professor Jubilado da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra