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Segurança Social: a insustentável dívida do sistema

15 de Fevereiro 2025 Jornal Campeão: Segurança Social: a insustentável dívida do sistema

Insatisfeito com o trabalho do Livro Verde sobre a Sustentabilidade do Sistema Previdencial, o Governo de Luís Montenegro criou um grupo de especialistas para analisar o financiamento das pensões e da Segurança Social (SS).

Liderado pelo economista Jorge Bravo, a equipa de 10 pessoas, na maioria de gabinetes ministeriais e da SS, tem um ano para apresentar um relatório final e um plano de acção. O despacho de nomeação refere que o grupo de trabalho iniciou funções a 30 de Janeiro deste ano e deve apresentar resultados no início de 2026.

Jorge Bravo e Carla Castro (antiga deputada da Iniciativa Liberal) integram este grupo de trabalho e consideram que a SS não é financeiramente sustentável e defendem a transição de um regime de repartição do sistema de pensões para um regime de capitalização, alicerçado em contribuições individuais.

Entretanto, o Tribunal de Contas (TdC) lançou contributos para o debate. Numa auditoria aos relatórios sobre a ‘Sustentabilidade Financeira da SS’, que acompanharam as propostas de Orçamento do Estado (OE) entre 2018 e 2024, é identificado um “buraco” de 228 mil milhões de euros no sistema de protecção social contributiva em Portugal, além de apontar para falhas significativas na forma como a sustentabilidade do sistema tem sido projectada.

Sobre este relatório, o economista Eugénio Rosa fez um estudo de análise, a que o “Campeão das Províncias” teve acesso, que indica que o relatório do TdC “não tem aderência” à realidade e é “alarmista”. “Está a causar instabilidade nos actuais e futuros pensionistas e, conjuntamente com o Livro Verde sobre a SS” da comissão nomeada pelo anterior Governo, “quer desacreditar a SS para criar mercado para os fundos pensões”.

O relatório do TdC, intitulado ‘Auditoria ao relatório sobre a sustentabilidade da SS’, “é enganador, pois apesar de afirmar que analisa os relatórios da sustentabilidade da SS que acompanham o OE de cada ano ‘mete no mesmo saco’ também a Caixa Geral de Aposentações (CGA), para assim tirar conclusões que não são verdadeiras em relação à SS”, considera Eugénio Rosa.

Este relatório vem-se juntar ao do ‘Livro Verde da Segurança Social’, que esteve em debate público até Dezembro de 2024, mas que, segundo Eugénio Rosa, “passou despercebido, e cujas propostas, se fossem implementadas, destruiriam a SS, pois defende que os descontos para a SS fossem desviados para Fundos de Pensões Profissionais constituídos pelas empresas”.

“Este duplo ataque que visa, se tiver êxito, reservar no final à SS o pagamento de pensões mínimas (próximas do salário mínimo nacional) ficando o resto reservado a fundos de pensões privados exige um alerta e a sua desconstrução”, alerta o economista.

Segurança Social e CGA: dois sistemas diferentes

Para Eugénio Rosa, tanto Jorge Bravo (homem da Associação de Fundos de Pensões Privados, agora nomeado presidente do grupo de trabalho pela ministra Maria do Rosário Ramalho), como o TdC “esquecem por que razão a CGA apresenta anualmente défices elevados suportados pelo OE”. A razão, explica Eugénio Rosa, “é que durante 75 anos (até 2005), o Estado apropriou-se de uma parte contribuições que devia ter entregado à CGA e aplicadas num fundo semelhante ao Fundo de Estabilização Financeira da SS. Se tivesse feito isso, não teria de suportar agora os défices, seria o fundo”.

No livro publicado em 2015, intitulado ‘Como garantir a sustentabilidade da Segurança Social e CGA’, da autoria de Eugénio Rosa, é dito, claramente, que “a CGA teve até 2005 um sistema de financiamento muito diferente do regime geral da SS. Nunca foi fixada uma taxa de contribuição a pagar pelos trabalhadores e pelos empregadores públicos de forma a garantir que, na data de aposentação do trabalhador, tivesse sido entregue à CGA o montante necessário, calculado actuarialmente, para garantir o pagamento da pensão ao trabalhador durante o período da sua vida após a sua aposentação. O Estado, com o poder que tinha de legislar em ‘beneficio próprio’, estabeleceu um sistema que lhe permitia ficar com uma parcela das contribuições. O empregador público não pagava uma contribuição percentual fixa (23,75% como as empresas privadas), mas apenas transferia do OE para CGA, anualmente, o necessário que, somado às quotizações dos trabalhadores, fosse suficiente para pagar as pensões aos trabalhadores que estavam aposentados”.

Este sistema de financiamento determinou na primeira fase, em que o número de trabalhadores no activo era elevado, mas o de aposentados reduzido, transferências diminutas do OE para a CGA (por exemplo em 1994, apenas 11,4% da massa salarial, no início da CGA era muito menos), o que significou uma elevada “poupança” para o Estado que utilizou esse dinheiro para pagar outras despesas.

Como as taxas de rentabilidade médias nos últimos 20 anos variaram entre 3% e 5%, e rentabilizando os 14.199 milhões de euros, a média destas duas taxas, no fim de 2024, ter-se-ia acumulado 31.111 milhões, informa Eugénio Rosa. E este valor refere-se só ao período 1993/2004, ou seja, a 12 anos. “Mas a CGA foi criada em 1929. E este sistema sempre funcionou assim. O Estado apropriou-se de muitos milhares de milhões de euros dos trabalhadores. Em 2005, o Governo transformou a CGA num regime fechado, ou seja, mais nenhum trabalhador se pôde inscrever na CGA. O aumento do défice era inevitável. E o TdC e Jorge Bravo ignoram tudo isto nas suas retóricas”, acusa Eugénio Rosa.

Estado deve ao regime contributivo 17.047 milhões

Segundo o relatório da Comissão do Livro Branco da SS, criada pela Resolução do Conselho de Ministros nº 22/96, e presidida por Correia de Campos, o não cumprimento pelo Estado da Lei de Bases da SS de 1984, entre 1985 e 1995, que dispunha que “as despesas de SS sem base contributiva (regimes não contributivos, acção social e despesas de administração) são obrigatoriamente financiadas por transferências do OE”, gerou uma enorme divida à SS. “E isto porque o apoio à pobreza não é obrigação apenas dos trabalhadores por conta de outrem que descontam para SS, mas sim de toda a sociedade, por isso tem de ser suportada por impostos pagos por todos”, contextualiza Eugénio Rosa. E, adianta, “como o Governo não cumpriu a lei que ele próprio tinha também aprovado, foi o regime contributivo que durante 10 anos suportou essa despesa. O incumprimento da lei por parte do Governo gerou uma dívida do Estado à SS estimada em 1.206,4 milhões de contos (se fosse considerado desde 1975, que também foi paga pelo regime contributivo a dívida do Estado seria de cerca de 5.000 milhões de contos). Mas admitindo a dívida de 1.206,4 milhões de contos, e rentabilizando esta valor à média das taxas consideradas anteriormente (4%) corresponde, em 2024, a 17.047 milhões de euros que o Estado deve ao regime contributivo. Se o Estado pagasse ao regime contributivo o que ilegalmente utilizou, a sustentabilidade da SS ficaria ainda mais reforçada. Mas desta dívida do Estado à SS, o TdC não fala no seu relatório. Porquê?”, questiona.

O economista não tem dúvidas, as dívidas à SS, que o TdC ignora no seu relatório, não são apenas as anteriores. “Basta analisar os balanços da SS que constam do relatório dos OE para 2024 e 2025. Segundo o balanço da SS de 2022, neste ano, as dívidas dos contribuintes à SS somavam já 15.719,9 milhões de euros, sendo 4.976,1 milhões de descontos feitos pelas empresas nos salários dos trabalhadores, mas não entregues à SS. E, no mesmo balanço, já o Governo de António Costa considerava que 10.123,1 milhões (3.213,9 milhões de descontos feitos nos salários) estavam definitivamente perdidos tendo constituído, por isso 10.123,1 milhões de euros de imparidades para pura e simplesmente anular essa enorme dívida”.

Para Eugénio Rosa, esta “monstruosa” perda de receitas pela SS resulta “do facto de os sucessivos Governos não afectarem à cobrança das dívidas os meios humanos e materiais necessários, o que determina que não se actue a tempo e horas e, quando se chega, as empresas e os seus bens já desapareceram ou então foram transferidos para outra empresa com um nome diferente, mas com os mesmos proprietários”. E adianta que a confirmação desta enorme perda de receita está no balanço da SS de 2023, constante do relatório do OE-2025 do Governo de Luís Montenegro. Segundo os dados que constam desse balanço, “a dívida dos contribuintes à SS já era apenas 5.227,8 milhões de euros, tendo desaparecido pelo menos 10.492,1 milhões, a maior, por incúria dos sucessivos Governos. Mas sobre esta enorme receita perdida pela SS que não é cobrada por falta de meios, que corrói a sua sustentabilidade, o TdC não diz uma única palavra no seu relatório”, remata Eugénio Rosa.

Texto: Ana Clara (Jornalista do “Campeão” em Lisboa)

Publicado na edição em papel do Campeão das Províncias de 13 de Fevereiro de 2024