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Roysel, a bailarina que encanta os mais novos na Figueira da Foz

15 de Fevereiro 2025 Jornal Campeão: Roysel, a bailarina que encanta os mais novos na Figueira da Foz

É uma espécie de Flautista de Hamelin, mas quem lhe segue os passos são os pés pequeninos das crianças que se deixam encantar não apenas pela sua técnica de ensino de ballet e outras danças, mas também pela sua doçura. A metáfora também acaba no destino: não os guia para longe da cidade, mas antes para o mundo das artes e dos sonhos, um universo feito de movimentos, claro, mas também de emoções, de ligações sinápticas que a ciência ainda está a estudar mas com efeitos de que já não há dúvidas: dançar faz bem ao corpo e à alma, ao cérebro e à comunidade. Vamos então conhecer Roysel Alfonso Valdés.

Nasceu em Habana, Cuba, há 42 anos, embora não aparente mais de 30. Cedo começou a dançar, até porque a zona onde vivia era fortemente influenciada por músicos, pelas danças e pela comunidade hispânica residente em Habana, “um caldo de culturas”, como Roysel apelida a sua terra natal, ainda que ela própria tenha na sua árvore genealógica de chineses, escravos africanos e galegos. Mas avancemos novamente para a geração de Roysel, que aos 18 anos conseguiu, pela primeira vez, sair de Cuba, rumo a Lanzarote, Espanha, para um espectáculo de três meses.

Regressaria à sua escola e companhia de teatro de revista, a conceituada “Teatro América”, onde faria a audição, já em 2003, para “Fuego Latino”, um dos muitos shows cubanos que o Casino Figueira exibia nos verões figueirenses. Seleccionada, veio então para a Figueira da Foz, onde travaria contacto, entre muitas outras pessoas, com António Ribeiro, mais conhecido na noite local como o ‘Tó do Roll’s’, o rosto e alma de um dos mais populares bares de então, o Roll’s Bar Irish Pub. “Não aconteceu nada, só nos conhecemos”, explica Roysel. Mas algo terá acontecido interiormente, já que poucos dias depois de Roysel regressar a Cuba, finda a temporada de espectáculo no Casino, começaram a trocar e-mails, a conversar, e não tardou que ele a fosse visitar, sim, ali ao lado, a Cuba. Ficou por lá duas semanas, regressou à Figueira e a 28 de Maio desse mesmo ano casavam em Cuba, numa cerimónia que Roysel recorda como simples e bonita. Em Setembro, Roysel fez as malas e deixou para trás os pais, Coralia e Rolando, e os irmãos, rumando a Portugal, com a tranquilidade de saber que, saindo como mulher casada para o país do marido, podia regressar a casa quando quisesse. Acabaria por fazê-lo apenas uma vez em 2007.

A dança(r) na Figueira

É em Portugal que a vida começou a acelerar. Roysel tinha formação de bailarina de espectáculos musicais e dança espanhola, formação do Grande Teatro de Habana e do Centro Galego de Habana, mas não sabia por onde começar. Num golpe de sorte, foi logo na embaixada que conheceu alguém que lhe indicou um nome que a ajudaria a arrancar o que viria a ser uma carreira de sucesso: Annarella Sánchez, em cuja academia, em Leiria, Roysel começou a trabalhar, como assistente. Mas as aulas eram em locais longínquos entre si e Roysel não tinha carro.

Começou à procura de oportunidades na Figueira, onde tinha o marido e queria constituir família. Mais uma vez, um golpe de sorte, o tal que protege os audazes, surgiu, desta vez pela mão do multifacetado figueirense Miguel Babo, que procurava um grupo pequeno para um espectáculo na centenária Assembleia Figueirense. Roysel reuniu uns bailarinos amigos e aceitou o desafio. Dali nasceu também uma ligação à associação e às associações geminadas, nomeadamente o Ginásio Figueirense, que viria a ser o primeiro local onde Roysel daria aulas em nome próprio: Academia Roysel Alfonso (ARA). Chegaram a fazer os intervalos dos jogos, com coreografias animadas, e nunca o número, maior ou menor, de alunos, a fez baixar os braços.

Seguiu-se a Assembleia Figueirense, primeiro apenas com duas crianças, depois com cerca de duas dezenas. “No início, não falava nada de português mas, em poucos meses, já falava como falo hoje, acho que bem, embora sempre com este sotaque”, explica, no sotaque mais doce que já se ouviu em terras figueirenses. Da Assembleia Figueirense passou, por questões logísticas, para a Filarmónica Figueirense, outra instituição centenária onde o trabalho deu tantos frutos que até um 1.º e 3.º prémios trouxeram de um concurso nacional em Viana do Castelo, os primeiros de muitos com a chancela da ARA. “Eram quase só meninas, continuam a ser, este ano tenho três meninos e é uma conquista”, afirma, lamentando que se continue a dissociar a dança de virilidade, quando é necessária tanta força, musculatura, técnica e disciplina para ser um bom bailarino.

Roysel, sendo grata a quem foi acolhendo as suas aulas ao longo dos tempos, queria mais, queria um espaço que pudesse tornar seu. O primeiro espaço que arrendou, corria o ano de 2012, e pôs o marido, que já se tinha ocupado da idealização e decoração do Roll’s, de volta às obras. Ficou a seu gosto mas, pouco tempo depois, os senhorios quiseram vender o espaço e, sem ter como o adquirir, tiveram de sair. Ficou na Filarmónica Dez de Agosto alguns meses, outros no pavilhão da Escola Infante D. Pedro. “Sou-lhes muito grata”, sublinha. Finalmente, porém, surgiu um novo espaço, “estava a cair, tinha sido muito afectado pelo Leslie, mas tinha potencial”, diz a sempre sonhadora e mulher de armas que é Roysel. O estúdio na Praceta António Sérgio de Oliveira (mesmo ao lado da EB 2/3 Dr. João de Barros, o ‘ciclo’) rapidamente se revelou, nas mãos hábeis do Tó do Roll’s, tudo o que Roysel sonhara.

Ninguém pARA a dança

A ARA tem hoje 20 anos de histórias, muitos prémios nacionais e internacionais mas, sobretudo, muitas memórias. Inês Brás, hoje na televisão nacional, foi uma das bailarinas que passou pelas suas mãos em pequenina. Num livro feito à mão, com fotografias de ambas nas aulas, nos ensaios e em espectáculos, nota-se bem o carinho que as alunas têm por Roysel. Inês descreve-a, nesse scrapbook, como “expressiva, divertida, encantadora, exigente, boa professora, espontânea e companheira”. Em outra carta, uma menina, também Inês, diz-lhe que “nem sabia se ia gostar” de dançar mas que, com a Roysel como professora, descobriu divertimento, alegria e felicidade. “Nunca vou parar de dançar”, garante, na sua caligrafia infantil. Também a Sara quis expressar a Roysel a sua gratidão. “Algumas das minhas melhores memórias são as que tenho da ARA”, escreve, a certo ponto, numa longa carta, recheada de pormenores de viagens para competições.

A ciência por detrás da dança

No Relatório Final de Estágio apresentado à Escola Superior de Dança (Instituto Politécnico de Lisboa) com vista à obtenção do grau de Mestre em Ensino de Dança, orientado pela Professora Especialista Cristina Maria Pereira de Almeida Graça, Roysel dá umas pistas sobre o seu entendimento da importância da dança na construção do ser humano. “Sustentada pelo autoconhecimento, pela consciência do funcionamento do mundo (regras), da autonomia de interpretação dos critérios, alternativas (pensar pela própria cabeça), participação activa nas decisões colectivas, capacidade para pôr em prática os projectos e objectivos, assim como a auto responsabilidade pelas acções e decisões tomadas (…) estas competências desembocam em quatro grandes áreas: aprender a ser, a conviver, a conhecer e a fazer. Cada uma delas actua sobre capacidades bem definidas. (…) O aprender a conviver e aprender a fazer são as áreas que se observam mais complexas a nível de competências e ambas atingem sub-áreas associadas aos relacionamentos como a comunicação, o trabalho em grupo, a convivência, que estão relacionados com o respeito ao outro, a empatia, a cooperação, o diálogo… entre muitos outros. Por último, o aprender a conhecer implica competências associadas à cognição: a lógica e motivação, assim como os vários tipos de pensamento: investigativo, crítico e criativo, a flexibilidade e a curiosidade.(…) Os professores de dança são educadores e podem olhar para os estudantes como um todo. Um artista é primeiramente um ser humano e ao ter-se consciência dessa complexidade, criar-se-ão condições de orientar uma prática que inclua o ser, não apenas o artista”. De forma mais informal, Roysel conclui, “a dança contribui, sem dúvida, para a saúde física e mental, para o desenvolvimento do cérebro e do corpo, mas é muito mais do que isso, é uma arte, e é uma pena que as artes não mereçam a devida atenção na educação, no currículo educativo, em Portugal”.

Texto: Andreia Gouveia

Publicado na edição em papel do Campeão das Províncias de 13 de Fevereiro de 2024