Coimbra  27 de Março de 2025 | Director: Lino Vinhal

Semanário no Papel - Diário Online

 

António Sérgio Marques

Combater e erradicar a violência doméstica da sociedade portuguesa

14 de Fevereiro 2025

(É utópico? Também já foi utópico acabar com a escravatura, abolir a pena de morte, instituir a democracia como forma de governo, vencer Hitler e a máquina de guerra nazi, conferir o direito de voto às mulheres, ir à lua – tal como seria distópico enfiar um computador dentro de um telefone e estar simultaneamente ligado a centenas de milhões de alminhas que passam mais horas de vida a olhar para um ecrã que para todo um mundo real e palpável, de onde se vão ausentando até ao limite da sua supressão cognitiva e existencial…)

“Violência Doméstica: As câmaras de tortura que Marcelo tem de levar ao Conselho de Estado.”

Foi com este título que Paulo Baldaia introduziu o artigo de opinião que publicou na edição on-line do Expresso de 03/02/2025 – um repto ao poder político sob a forma de lição de moral, de ética e de humanidade, oportuna e pertinentemente oferecida pelo jornalista, cronista e comentador político ao Professor Presidente, curiosamente um ex-(e futuro) cronista e comentador político. Baldaia faz um apelo enérgico e imperativo ao inconformismo, à indignação, à revolta da consciência cívica, à liderança e à acção do Senhor Presidente da República contra esse flagelo humano e civilizacional, e à mobilização da sociedade portuguesa para um combate feroz e intrasigente à mais vil, cobarde e cruel das formas de violência, dominação e subjugação de que os seres da nossa espécie são capazes.

Mais que um mero artigo de opinião, este texto é, portanto, um manifesto explícito sobre a insuportável persistência do cancro da violência doméstica na sociedade portuguesa, dirigido certeira e cruamente ao poder político do nosso país.

Só à luz do mais abjecto cinismo, do torpe calculismo e da falta de carácter e envergadura política (e humana) dos protagonistas da política menor que se faz em Portugal, se consegue perceber a forma como Luís Montenegro, o líder do governo da República, desvalorizou publicamente a chaga social da violência doméstica – e o inferno privativo em que se encontram aprisionadas milhares de mulheres e crianças por esse país fora, ‘condenadas’ pelos seus cruéis e pusilânimes carcereiros a meses, anos, décadas de sofrimento, clausura, tortura, humilhação e submissão, que culminam em traumas físicos e psicológicos tantas vezes irrecuperáveis e irreversíveis, e, com uma frequência aviltante, na sua morte – enquanto, por outro lado, exarceba e distorce os números relativos à criminalidade no espaço público, e estabelece correlações apressadas ou inexistentes com o fenómeno da imigração.

Tão progressista como os Taliban

Esta análise e consequente definição das prioridades políticas no combate à criminalidade por parte do nosso Primeiro-ministro põe a nu a sua tacanhez provinciana, o seu conservadorismo serôdio e as suas confrangedoras faltas de tacto, visão e integridade políticas, pois revelam um homem simplório, sinuoso, sonso e manhoso, um lamentável produto do passado salazarento, conformado e triste da pátria, sem coragem nem decência políticas, a anos-luz do legado ético, político e cívico de Sá Carneiro e dos seus instinto e destreza políticos.

É deprimente constatar a ingenuidade, a irracionalidade política e a indignidade com que Montenegro procura cativar e conquistar o eleitorado do Chega, oferecendo-lhes a mesma visão do mundo e as mesmas soluções demagógicas e reaccionárias que o líder da extrema-direita parlamentar portuguesa, enquanto varre para debaixo do tapete o mais hediondo e prevalente crime desta nação de ‘brandos costumes’ – menos brandos dentro de portas -, opção que agrada obviamente a esse eleitorado predominantemente marialva, machista e misógino, que, quando não a pratica, encara a violência doméstica com uma permissividade e uma aceitação moral próprias de gente tão progressista e decente como os Taliban.

Seria, portanto, conveniente que o Senhor Presidente da República contivesse a sua impulsividade na gestão da sua agenda mediática, e tomasse a única atitude correcta perante o infame oportunismo político de Montenegro e Ventura numa matéria tão grave e sensível, usando a convocação do Conselho de Estado para lançar e dar visibilidade a um debate nacional sério e consequente sobre esta praga da violência doméstica que ensombra e mancha, indelevelmente e desde sempre, com as cores da dor e da vergonha – o vermelho do sangue inocente e o negro do silêncio mortal – a história das sociedades humanas.

Rendidos ao fado infame dos homens fracos

Isso é que seria um legado superior do magistério do Senhor Professor. As Mulheres – e os Homens a sério, não os cobardes que batem nas companheiras e nas crianças e lhes infernizam a existência – estariam certamente ao seu lado, nesta nobre e inadiável empresa, que há muito deveria ser um desígnio nacional.

Abril fez-se para acabar com a ditadura que esmagava um país, um povo, uma nação de homens e mulheres despojados e subjugados, a quem o fascismo negava a liberdade e o direito ao futuro. Não é concebível aceitar que Abril, meio século depois, tenha sido travado e permaneça à porta dos lares de milhares de famílias, onde ainda hoje reinam pequenos e miseráveis clones de Salazar e comandita, ditadores cobardes e tiranetes desumanos, que mantém como reféns dos seus egos flácidos e tristes e dos seus impulsos violentos e destrutivos as companheiras, os filhos e enteados, vítimas da crueldade do agressor e da indiferença de uma sociedade e de um Estado incapazes de fazer cumprir Abril.

Uma sociedade e um Estado rendidos ao fado infame da impunidade generalizada dos homens fracos que se fazem fortes entre quatro paredes, longe do olhar do mundo.

Uma sociedade e um Estado rendidos ao fracasso inaceitável da missão primordial dos democratas que fizeram Abril: libertar todos os presos políticos do anterior regime, aquele que subsiste em cada casa-coutada dos vermes que mimetizam todos os dias, todas as noites, boçal e sadicamente, os Antónios de Oliveira, os Franciscos, Benitos, Adolfos, Maos, Josefs, Augustos, Saddams, Moahmmeds e Ruhollahs, criaturas grotescas que desonram a História da espécie com a memória atroz da sua existência maligna, sanguinária e pusilânime. Abril será um projecto eternamente adiado, um falhanço clamoroso dos seus herdeiros, de todos nós, portugueses, enquanto os presos políticos de hoje – as mulheres e as crianças encarcerados pelas micro-ditaduras patriarcais entrincheiradas no recato do lar – não forem libertados. Definitivamente. Em segurança. Com direito a tempo, espaço e recursos, garantidos pela República, para sarar traumas, físicos e emocionais, para descobrir a esperança, para inventar o futuro.

Sim, Senhor Presidente, esse seria um legado que lhe daria um lugar na História da Pátria ao lado dos Homens e Mulheres que desencadearam Abril – o lugar daquele que fez cumprir a promessa de liberdade para todos os portugueses e portuguesas aprisionados por detrás das grades ensanguentadas de todos os fascismos que castraram e continuam a castrar Portugal e a adiar dolorosamente a consumação de Abril! Haja vontade, determinação e compromisso com a nobreza da missão, caro Professor, que coragem é qualidade que os portugueses sabem que não lhe falta.