De novo vos conduzo pela mão à descoberta deste Portugal esquecido. Ao redor deste lugar, só vislumbro uma cintura de montanhas. O Moradal veste-se de cores agrestes e, ao longe, a Serra da Estrela cobre-se de uma fina película de neblina que lhe dá um aspeto austero. Aqui e ali, na rota do horizonte, umas linhas brancas rasgam as cordilheiras. São as estradas deste interior sem fim. No seu traçado sinuoso, desaparecem no cume das montanhas, como se nos indicassem o caminho para o infinito. Por aqui, vamos vagueando por uma estrada quase deserta. Uma brisa suave sussurra-nos aos ouvidos. A natureza pinta-se de cores discretas, prenuncio de um estado de alma que se pressente. É a Liturgia do Tempo.
Partimos do cruzamento de Salgueiro do Campo e seguimos em direção a Freixial do Campo. São cinco quilómetros de planalto, sempre com a serra mais alta do continente como pano de fundo. Pelo caminho, passamos pelo “cimo do povo” da aldeia do Juncal do Campo e, à esquerda, o Café do “Real” lá está, de portas fechadas e ervas daninhas que vão trepando pelos muros. Já foi local de convívio dos trabalhadores de várias gerações. Hoje é uma relíquia. Uns, ainda se lembram do esplendor dos tempos de antanho, dos domingos onde melhoravam o seu trajar, para assistir à missa e beber um copo no “Real”. Para outros, os mais velhos, a recordação esbate-se no Tempo, deambulando por entre as ruínas da memória.
Retomemos viagem. Dois quilómetros à frente, a estrada inclina ligeiramente numa descida repousante, e ao fundo aparece o casario de Freixial do Campo. A estrada é agora bifurcada e no meio surge aos nossos olhos um pequeno café. Vista de longe, a aldeia parece o bico de um ferro de engomar. Depois, quando penetramos no ventre da povoação, as ruas são estreitas e escuras. Aqui e ali, pequenos comércios em volta de um singelo coreto. E idosos. Muitos idosos. A Ti’ Ana, com seu sorriso de menina e do alto da sua provecta idade, vai caminhando curvada com as mãos atrás das costas. A cabeça quase bate no chão, e é difícil perceber aquele milagre de locomoção e estabilidade. Em momentos de maior inferioridade, é o cajado que lhe ampara a vida. O Farto, lá se vai arrastando com a sua bengala. O Calmeiro, do alto dos seus óculos fortemente graduados, espreita de soslaio por entre as cortinas do café. A Rosa, com umas farripas de cabelo prateado a emoldurarem-lhe a face, traz estampado no rosto os tormentos de uma vida.
De repente, numa viela apertada, ouvimos o chiar de uma carroça. O burrito, de aspeto paciente, desliza pela viela sombria, com o som metálico das ferraduras a ferir o empedrado da calçada. Por uma rua estreita entrámos. Por uma rua estreita saímos. De novo regressamos ao Juncal do Campo. Como uma serpente, a estrada estende-se sinuosa monte abaixo, ladeada pelo casario humilde. Vasos floridos vão alindando portas e janelas. No “fundo do povo” o lavadouro público, local de reunião das lavadeiras.
Ali se fala. Ali se conversa dos encontros e desencontros da vida. Depois, a passagem pela singela capela, que nos indica o fim da aldeia. Rumamos então em direção aos campos. Ao longe, divisamos o muro branco do cemitério, sempre cuidado e florido, um hino à saudade. E à noite, quando o planalto e o vale se cobrem com um manto de silêncio, já só resta esperar o renascer de um novo dia. Porque é quando o sol espreita pela madrugada, que recomeça a faina dos campos. Mas enquanto a noite espessa persistir, é à lareira que se medita sobre a cor parda da vida dos simples. E, lá fora, a natureza irmanada neste sentir, adormece num regaço da paz. As estrelas, mortiças ou cintilantes, há muito que se recolheram no bojo grandioso de um céu plúmbeo. E, nesta amálgama de sentimentos, neste ocaso de um Tempo pretérito, nem sequer se vislumbra a sombra da lua…
(*) Contos Campesinos)