Coimbra  26 de Janeiro de 2025 | Director: Lino Vinhal

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Hernâni Caniço

Saúde em 2025, era uma vez…

10 de Janeiro 2025

Antes do 25 de Abril não havia direito à saúde, por estranho que hoje possa parecer. Era paga, mesmo em “misericórdias”, e quem não tinha recursos económicos não tinha assistência médica. O povo, que hoje vota na extrema direita, deve recorrer à história, para que não tenha ilusões do que o espera, se…

Após o 25 de Abril 74, tornei-me médico (1977). Trabalhei em serviço de urgência nos serviços públicos (Montemor-o-Velho, por escala) e em instituições de solidariedade social (Avelar, quando os outros não queriam) muitas noites de Natal, dias de Natal, passagens de Ano, dias de Ano Novo, Páscoa e outros dias de repouso para muitos e missão para outros. E em consultório também em Arazede, Formoselha e Granja do Ulmeiro, além de Montemor-o-Velho, com mais borlas que retribuições pecuniárias. Nunca enriqueci, nem quis enriquecer.

Um dia, ao chegar a casa depois de 3 dias e 3 noites de serviço, uma das minhas filhas, em vez de correr para me abraçar, disse: “Estás cá hoje?” Tive um choque. A minha vida profissional (decorreram 47 anos) foi um misto de empenho, dedicação e sacrifício. Não foi um exclusivo, toda a minha geração (com raras excepções) acreditou num mundo novo, na aplicação dos direitos humanos como a saúde, no seu contributo para a solidariedade e para dar felicidade, prevenindo e combatendo a doença, promovendo literacia e educação para a saúde.

Fiz Saúde Pública (Santa Comba Dão), Serviço Médico à Periferia (Penela), muitos médicos fixaram-se no interior, para trás do sol posto, mas onde havia pessoas, vidas, famílias, labor. E afecto, que nos era transmitido até por gente que nunca tinha visto um médico.

Pela minha parte, observei, tratei ou mesmo curei doentes, suturei feridos e socorri estropiados, fiz autópsias, exumações e exames directos, esterilizei material, lavei o chão de sangue e terra, vinha à varanda descongestionar e apenas via o cemitério.

Comia numa tábua contra a parede, fazia clínica médica, saúde materno-infantil, planeamento familiar, saúde escolar. E aos domingos, saía de Coimbra às 8h00, ia às freguesias do concelho (Santa Comba Dão) fazer rastreios de hipertensão e diabetes, consultas de ocasião, ensino para a saúde. Chegava às 22h 00. Tudo pro bono.

E, para cúmulo, durante 23 anos, África, Ásia e América Latina, foram a minha prioridade de voluntariado, em missões de reconhecimento, avaliação e prestação de cuidados ocasional. Ainda ensinava na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra (27 anos), terei tido cerca de 10.000 alunos (médicos), que me reconhecem e estimam (ou não).

A minha geração não é melhor que qualquer outra. Mas tinha preocupações com o serviço público, com a pobreza e miséria que observávamos, com a vida (dos outros). Sofríamos, sem perder a isenção inerente à profissão. Éramos solidários.

Por isso… saem

Hoje, as novas gerações também têm preocupação com a conciliação da vida profissional com a vida familiar, com as más condições de trabalho, com os baixos salários desajustados da sua qualificação, com a desconsideração, o desrespeito e mesmo o desprezo do poder político. Trabalham, para que um filho não lhes possa dizer:“Estás cá hoje?”.

Por isso, saem do serviço público para o exercício liberal, emigram para onde são respeitados e bem pagos, criam condições para uma vida familiar estável, deixando para último plano os constrangimentos e o martírio da burocracia, salário indigno e condições decrépitas.

Os decisores, o poder político em sucessivos Governos, preocupa-se com o Orçamento (aumentando-o para lateralidades do SNS), ignora o dilema dos médicos que sabem, querem aplicar o que sabem e são tratados como quem pouco sabe ou lhes interessa, não cria atractividade para o exercício público (carreiras médicas desactualizadas), não estimula a dedicação plena (dedicação, sim), premeia indicadores de saúde capciosos (e falaciosos), desperdiça uma geração que já não tem a boa vontade de outrora (porque será?).

Há “administradores” que dizem que os médicos são corporativos, que não se dedicam à causa pública, querendo desvalorizá-los, ofendê-los, insultá-los. Para alguns, é o que lhes resta. As acusações não resolvem problemas, mas descartam-nos para outros.

E, já agora, para não falar dos outros profissionais de saúde, cada vez mais qualificados, necessários e essenciais, pagos ao pataco, tratados como pechisbeque, responsabilizados pelo que não é seu compromisso, mesmo que alguns o queiram.

50 anos depois de Abril fecham-se serviços de urgência em períodos de férias, Natal, passagem de Ano, etc., invocando que o SNS é uno. Isto é “normal”? E a população, os cidadãos, habituaram-se ao corte de direitos, como se um serviço de urgência fosse despropositado (ou dispensável), a distância não fosse importante (partos em ambulâncias?), a gravidade da doença não impusesse regras emergentes (a morte saiu à rua?).

Em 2025, que saúde teremos? Inauguração de estruturas (que outros projectaram), desinvestimento em recursos humanos (na prática), mais emigração e florescimento do exercício profissional privado (por cansaço e desilusão), aumento do Orçamento (para contratualização com privados), indefinição do sector social e autárquico (continua). Tomara que não seja assim, mas é.

E agora fazem um “acordo” com (alguns) médicos, em que a (pomposa) Ministra abre 2 ou 3 lugares de carreira para 60 candidatos, a ganhar mais 90 euros (líquidos) por mês? É assim que querem cativar os médicos? Declaração de ausência de conflito de interesses: nada “beneficiarei”, pois estou aposentado. Continuará a destruição do SNS. Vamos opor-nos a esse desmantelamento.

(*) Médico e vereador do PS na Câmara de Coimbra