Coimbra  26 de Janeiro de 2025 | Director: Lino Vinhal

Semanário no Papel - Diário Online

 

Ligados às Máquinas celebram a música e a vida

29 de Dezembro 2024 Jornal Campeão: Ligados às Máquinas celebram a música e a vida

Fotografia de Vera Marmelo

 

Os Ligados às Máquinas não são apenas uma banda. Eles são um movimento, uma celebração da criatividade sem limites e uma prova viva de que a música pode ser um poderoso motor de inclusão. Surgidos, há uma década, na Associação de Paralisia Cerebral de Coimbra, este grupo lançou recentemente o seu álbum de estreia, Amor Dimensional, pela Omnichord Records.

O início de uma revolução musical

Paulo Jacob, maestro e facilitador do projecto, destaca a singularidade desta iniciativa, que é, talvez, a primeira e única orquestra de amostras musicais do mundo, composta por pessoas com alterações neuro-motoras graves. O grupo é constituído por utilizadores de cadeiras de rodas e indivíduos com doenças neurodegenerativas, como a paralisia cerebral. A proposta é simples, mas revolucionária: criar música através de amostras musicais escolhidas pelos próprios participantes, utilizando tecnologia adaptada às suas capacidades motoras.

O projecto nasceu da união entre a paixão pela música e o desejo de promover a plena participação artística de pessoas com alterações neuromotoras. Sob a orientação do musicoterapeuta Paulo Jacob, os Ligados às Máquinas exploram ferramentas tecnológicas como o Makey Makey – um dispositivo que transforma objectos do quotidiano em controladores musicais – para criar uma nova forma de expressão musical.

Nos primeiros anos, as sessões eram um espaço de partilha emocional, onde cada membro trazia músicas e sons marcantes da sua vida. Daí surgiu a ideia de criar uma “orquestra” de samples, em que cada integrante não só contribuísse com a sua identidade sonora, mas também controlasse directamente os excertos em tempo real.

“O projecto Ligados às Máquinas é um belo exemplo de como a tecnologia pode proporcionar acesso à actividade musical a quem mais precisa. Usamos tecnologia para transformar pequenos movimentos, até os mais ínfimos, em participação plena e autodeterminada”, explica Paulo Jacob. Para ele, a música é uma condição intrínseca à natureza humana, e o projecto permite que todos, independentemente das suas limitações físicas, possam criar e se expressar.

Em termos práticos, cada participante usa um controlador personalizado que permite converter qualquer objecto condutor de corrente eléctrica numa ferramenta para criar música. O foco não é apenas a performance musical, mas também o processo criativo colaborativo, que dá aos participantes a possibilidade de trabalhar em conjunto e expressar-se de forma socialmente integrada.

Entre os integrantes do grupo está Hélia Maia, que faz parte da Associação de Paralisia Cerebral de Coimbra (APCC) desde os seis anos. Aos 35 anos, Hélia partilha com entusiasmo a sua experiência como parte dos Ligados às Máquinas. “Este projecto deu outro ânimo. Ficamos com mais vontade de conhecer novas coisas”, reflecte.

Transformando desafios em arte

A história de Paulo Jacob com o projecto remonta a um “engano” feliz, que o levou a reencontrar um colega que estaria na altura a trabalhar com os 5ª Punkada. Originalmente licenciado em Educação Musical, começou a trabalhar na Associação de Paralisia Cerebral depois de conhecer o grupo. Foi aqui que percebeu o potencial da tecnologia como ferramenta para ajudar pessoas com limitações motoras a expressar-se através da música. O seu envolvimento com Ligados às Máquinas nasceu dessa experiência.

“Eu costumo dizer que entrei neste mundo pela porta dourada da ciência. Bastaram duas músicas para me convencer a fazer parte. A tecnologia tem um papel fundamental, mas sempre respeitando a identidade e as necessidades de cada um”, revela Paulo, lembrando que a experiência com Ligados às Máquinas é muito mais que um simples trabalho: é uma verdadeira transformação para todos os envolvidos.

 

Um álbum que retrata o dia-a-dia

Amor Dimensional é composto por nove faixas originais que representam diferentes momentos do dia. Hélia descreve com entusiasmo o conceito do álbum: “A primeira música é sobre o amanhecer, e depois vem o acordar para a vida. Temos também um tema sobre a preguiça, a refeição e o descanso, que termina com o sonho. É como se estivéssemos a contar uma história sobre um dia inteiro”.

Questionada sobre a sua faixa favorita, Hélia não hesita: “Adoro ‘Acordar para a Vida’. É uma música que me faz sentir bem”.

Música como propulsora de vida

 

Para Hélia, o trabalho colectivo é uma das maiores recompensas: “Nós começamos por retirar os sons, adaptar os samples e depois construir as músicas. É um processo demorado, mas vale muito a pena. Não imaginava que íamos chegar tão longe e ver as pessoas a gostarem dos nossos concertos e do disco, é muito gratificante”.

Apesar das dificuldades inerentes ao processo, Hélia destaca que nunca pensou em desistir. “Quanto mais festa, melhor!”, brinca, resumindo o espírito do grupo, que vê na música uma forma de celebrar a vida.

 

A tecnologia como ponte para a autonomia

A tecnologia desempenha um papel central na arte dos Ligados às Máquinas. Cada músico utiliza controladores personalizados ao seu movimento funcional, ligados a um computador e a cablagem adaptada. O resultado é uma estrutura que permite que cada um “dispare” samples, compondo músicas colectivamente de maneira inovadora.

Esta abordagem não apenas remove barreiras, mas também redefine a forma como entendemos a participação no processo criativo. Nos concertos ao vivo, a colisão entre a estaticidade física dos músicos e o dinamismo sonoro das suas criações torna-se uma metáfora poderosa de superação e inovação.

Um álbum, muitas mãos

Amor Dimensional é um marco na história do grupo. O disco, composto por nove faixas originais, foi criado com a colaboração directa de mais de 30 músicos e compositores nacionais. Este processo colaborativo ampliou os horizontes criativos da banda, permitindo a fusão de estilos tão diversos como hip-hop, fado, techno, blues, música erudita e concreta.

O impacto do projecto é evidente, mas Paulo Jacob destaca a importância de respeitar o processo criativo individual de cada membro. “A minha função é desafiar os participantes e ouvir as suas ideias. O processo criativo é democrático, e todos têm voz”, explica.

O caminho de Ligados às Máquinas está longe de ser fácil. Trabalhar com tecnologia adaptada, estabelecer circuitos eléctricos personalizados e gerir um grupo com necessidades tão diversas exige uma logística complexa e uma equipa dedicada. No entanto, o entusiasmo e a dedicação de todos os envolvidos são claros.

Mais do que música: uma mensagem de esperança

A transformação do projecto, que inicialmente parecia uma experiencia musical, passou a ser um verdadeiro movimento de inclusão e auto-superação. Os participantes começaram a perceber que eram mais do que indivíduos com limitações, eram também cidadãos plenos de direitos e, mais ainda, agentes culturais. A ideia de “inclusão”, muitas vezes tratada de forma superficial, foi desafiada no seio deste grupo. “Falamos muito sobre inclusão, mas pouco sobre participação”, aponta Paulo Jacob.

Ligados às Máquinas não é apenas um projecto artístico, mas também um manifesto. É uma celebração da força humana, da inclusão e da possibilidade infinita de criar algo belo mesmo diante de desafios. Com Amor Dimensional, os Ligados às Máquinas não só compartilham música, mas também uma mensagem poderosa: a arte é para todos e a vontade de viver e criar não conhece limites.