O espírito de Natal, tantas vezes idealizado como um momento de fraternidade e união, amor e partilha, tantas quantas as vezes se repete, surge ano sim, ano sim, como um refúgio de esperança no meio de um mundo muito acelerado e marcado por desigualdades e dor. Mas, ao analisarmos a sociedade dos dias de hoje, notamos uma inquietante dualidade… Por um lado, enaltece-se a solidariedade e o voluntariado como valores essenciais; por outro e, pela calada, estas práticas tornam-se, em muitos casos, um mero reflexo de pressões sociais e culturais que condicionam a nossa liberdade de ser e agir.
O voluntariado, enquanto expressão máxima de altruísmo, tem crescido cada vez mais em visibilidade. Numa realidade onde os problemas são amplificados pela ininterrupta conectividade, ajudar o próximo é cada vez mais valorizado, cada vez mais “cotado”, mas nem sempre pelas razões corretas… Será que estas acções são motivadas por uma empatia genuína ou, muitas das vezes, por uma necessidade de aceitação social, de reconhecimento, ou até pela culpa associada à noção de privilégio?!
O presente título reflete esta contradição… Ora bem,… somos incentivados a praticar o bem, mas esta liberdade aparente é frequentemente moldada por normas sociais que nos dizem como, quando e onde devemos ser solidários. No Natal, este fenómeno ganha forças e proporções maiores ainda, vindo transformar gestos de generosidade em rituais, muitas vezes, ou mais do que as que deviam ser, desprovidos de autenticidade.
O verdadeiro espírito de Natal deve ir além da superficialidade… Adentrando-se ao coração de Cristo! Não é o número de cabazes entregues ou as horas dedicadas a uma causa que definem o impacto de uma ação solidária, mas antes a intenção que lhe está subjacente! O voluntariado e a caridade não podem ser substitutos para políticas públicas justas e eficazes…. Ajudar o próximo é necessário, claro como a água, mas não deve nem pode ser a única resposta para um sistema que perpetua desigualdades e dependências.
O Natal, enquanto símbolo de fé, união, esperança e renovação, deveria sim ser uma oportunidade para reflectirmos sobre esta nossa sociedade e o papel que queremos nela desempenhar. Não basta ajudar de forma pontual; é essencial fazer-se a questão: como podemos contribuir para uma mudança estruturalmente disruptiva que torne a solidariedade numa escolha livre e não uma imposição cultural?
Companheiros, companheiras… Que este Natal e todos os que se seguem, sejam vividos com autenticidade, numa comunhão em que o voluntariado e a generosidade não sejam meras respostas a pressões externas, mas antes, pelo contrário, gestos genuínos de quem reconhece a humanidade no outro! Porque o verdadeiro espírito de Natal tem uma essência que não se impõe – cultiva-se, todos os dias, em liberdade e verdade.
Para o leitor, com estima:
Mary Halvorson – Cloudward (Full Album), jazz que considero experimental e cru, muito cru, mas, se o som pudesse pintar, este álbum seria uma obra-prima modernista, que muitos iriam querer pendurar nos ouvidos.
(*) Doutorando pela FMUC