O Porto de Pesca da Figueira da Foz tem uma visitante regular que também embarca, embora não pesque. Flávia Carvalho, de 30 anos, é técnica de conservação marinha na Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves (SPEA) desde 2022. Uma a duas vezes por semana Flávia sai da barra, na companhia de pescadores locais, para poder estudar e ajudar a avifauna marinha que por vezes é ameaçada por certas práticas humanas. É um trabalho de monitorização, tentativas e sensibilização da comunidade piscatória.
Para Flávia, “mais do que a protecção”, a conservação não termina ao evitar que animais morram em casos concretos. A conservação “implica a promoção de medidas a longo-prazo que permitam a manutenção dos animais, grupos e espécies, no seu ambiente, durante mais tempo”.
“Se formos acompanhar o cerco, normalmente saímos por volta das 22h00 e ficamos no mar até de madrugada, ou até mesmo de manhã”, segundo Flávia a jornada média é de 8 a 10 horas com os pés fora de terra firme. No caso do cerco, estes biólogos embarcam e estão mais recolhidos até ao navio chegar a um pesqueiro (zona de pesca no mar). Nesta altura, mesmo que seja de noite, os pescadores lançam as redes e, mais tarde, ligam as luzes exteriores. É, então, verificada uma maior actividade e proximidade das aves marinhas. “Durante a noite vemos mais gaivotas a aproximarem-se em reacção à actividade piscatória humana, do que outras espécies”, esclareceu Flávia. Estes profissionais são observadores da realidade, procuram não interferir com as operações a bordo.
“Papagaio afugentador”
O seu trabalho no navio passa essencialmente por contar, registar e verificar se há animais presos nas redes, que não sejam pescado. De 15 em 15 minutos o biólogo a bordo tem de contar e registar as aves que avista e no fim da pesca tem de contar o peixe que vem na rede (à unidade e por espécie), tomando ainda nota das condições meteorológicas (direcção e intensidade do vento, temperatura, altura da onda), de meia em meia hora, e quais as manobras que foram efectuadas. Estes dados são trabalhados para comparar com a informação previamente recolhida, identificar períodos críticos para as espécies, quais os principais perigos por arte de pesca e propor medidas para mitigar a captura acidental.
Neste momento estão a testar o “papagaio afugentador” que paira perto do navio em forma de ave de rapina, em tons escuros. Nas Berlengas esta medida já teve resultados positivos e estão a testar ao largo da Figueira.
A técnica de conservação marinha sabe que muito do esforço deve ser aplicado na sensibilização da comunidade do mar para evitar a captura de animais inúteis para a sua actividade profissional. É antiga a relação dos pescadores com as aves marinhas. Ainda hoje são bioindicadores de cardumes.
Muita sensibilidade
“É preciso compreender, no trabalho de sensibilização, que estes homens têm uma sensibilidade muito própria e que há espécies que não lhes são necessárias, não representam lucro e não gostam de as ver morrer” alerta Flávia. No entanto há trabalho constante a ser feito que muitas vezes mostra frutos muito bons, “mas há dias menos bons que nos trazem alguma descrença e nos fazem perguntar o que estamos aqui a fazer”. Conclui que, para a sensibilização neste meio, a presença física, o convívio, viagens a outros contextos é fundamental para abrir horizontes e trocar experiências.
Flávia garante que “fazemos o que fazemos porque gostamos muito”, todos os elementos se envolvem no processo de candidaturas a financiamento nacional e comunitário, apesar de haver profissionais com tarefas mais orientadas para o efeito. “O trabalho é sempre limitado” disse a profissional, que explicou que não é viável montar equipas tão numerosas e diversas quanto se deseja, devido à natureza incerta e à escassez do financiamento. Segundo a bióloga, estes projectos têm habitualmente uma duração que varia entre os 2 e os 5 anos, apesar de haver extensões “que normalmente não envolvem mais dinheiro, apenas mais trabalho”. É percepcionado no ramo que Portugal poderia investir mais nestas dimensões e que as indicações comunitárias também vão nesse sentido.
Mulher no meio de homens
Flávia conta-nos que o respeito e a delicadeza com que é tratada pelos seus novos companheiros de viagem são uma constante. “Os pescadores não estão habituados a ter companhia feminina a bordo, ficam contentes com a nossa presença e vê-se que nos respeitam e admiram por perceber que somos raparigas que queremos estudar e, para isso, saímos com eles em dias de mar melhor ou pior”, refere a bióloga.
Flávia diz que sente quase uma relação de igualdade, apesar das diferenças de funções, e confessa que tem aprendido bastante, como bióloga, fruto do convívio e acompanhamento dos homens do mar. “Saímos da Universidade com ideias muito claras sobre a preservação da vida que depois ganham uma nova estrutura com o contacto com o mundo da pesca, um meio muito social e de pessoas que fazem disto a sua vida”, acrescenta a académica.
A empatia, o respeito e a admiração são alguns resultados que nela floresceram ao privar com comunidade piscatória. “Estudei no ensino superior, mas a maioria do que aprendi sobre pesca, peixe e mar foi com eles”. Vê como consequência destas experiências, a conquista de um olhar mais racional e menos activista pela via emocional. Aprendeu mais do que ensinou, mas é claro para a bióloga que se estabelece um ambiente de troca de conhecimento e sabedoria.
Flávia, dos golfinhos para as aves
Flávia Carvalho licenciou-se em Biologia e fez o mestrado de Biologia Marinha na Universidade do Algarve. Quando terminou os estudos não sabia o que esperar do seu dia-a-dia no contexto de trabalho, mas sabia o que não queria fazer.
“Não queria trabalhar no Zoomarine, jardins zoológicos, nem em nada que tivesse animais fechados, apenas para proveito humano”, disse a técnica de conservação animal rematando que é contra a exploração animal. “Os animais percebem o sofrimento, os peixes menos que os mamíferos”, explicou a bióloga. “Segundo relatos de alguns pescadores, há 30 anos os golfinhos ainda eram vendidos em lota e depois da captura havia grupos da mesma espécie que perseguiam a embarcação a chorar, o que demonstra que existem laços”, considera.
Do mestrado para a conservação de aves foi um passo intuitivo, “mesmo antes de saber o que queria fazer, tinha a convicção de que deveria evitar activamente a morte de animais”. Antes de estar neste projecto, ainda no Algarve, Flávia trabalhou na conservação de golfinhos através da implementação de metodologias que minimizavam os acidentes com redes de pesca, Foi nessa altura que teve a primeira experiência com a protecção de aves
A pardela balear
“Este projecto é partilhado com a França, Espanha, Grécia e Malta e a ave específica que estamos a trabalhar é a pardela balear, que é a ave marinha mais ameaçada da Europa e apenas se reproduz nas Ilhas Baleares”, explica a bióloga Flávia Carvalho.
Esta parceria com Espanha permite um estudo continuado, tanto nos momentos em que a população de pardelas está em terra, como quando está no mar, que é o que se passa na costa compreendida na Zona de Protecção Especial (ZPE) que engloba Aveiro, Figueira da Foz e Nazaré, as zonas mais importantes para esta espécie em Portugal Continental.
Estes agentes amigos da vida animal reconhecem esta ave por se tratar de “uma pardela pequenina, com voo rápido junto à água, abundante ao largo da costa da Figueira e por aparecer normalmente no início da manhã. Esta pardela passa muito tempo na superfície, mas quando percebe a presença de alimento mergulha para pescar. Estes mergulhos ocorrem muitas vezes perto das redes de pesca, o que representa uma ameaça e o risco de ficarem presas. Além da pardela balear, outras aves importantes para estes profissionais são o pato preto, o alcatraz, a cagarra, o airo e a torda mergulheira.
António Carraco dos Reis
Texto publicado na edição em papel do “Campeão das Províncias” de 21 de Novembro de 2024