Saramago disse “É assim a vida, vai dando com uma mão até que chega o dia em que tira tudo com a outra” – in “As intermitências da Morte”. Vivemos numa era onde a inteligência artificial (IA) é o pilar e força motriz da inovação, produtividade e conveniência. Na euforia do avanço, ludibriados por tão mágica ferramenta, surge uma inquietante dicotomia: a mão que tudo nos oferece é a mão que parece retirar-nos a essência da nossa humanidade!
A IA representa um ás de trunfo sem precedentes, processa grandes volumes de informação e dados à velocidade da luz o que tornou possível um novo iluminismo. No campo da saúde auxilia no rastreio precoce de doenças como o cancro, fazendo-o com uma minúscula margem de erro e maior rapidez. Mas nem tudo são rosas, estas ferramentas têm mostrado um lado muito sombrio. Modelos de IA, treinados como cães guia, mas com dados enviesados, perpetuam discriminação e desigualdade, enquanto a crescente dependência da humanidade ameaça, de forma tão fria quanto a morte, milhões de empregos, criando-se a melodia que ecoará numa crise laboral global.
A questão ético-filosófica subjacente é mais profunda. A quem pertencem as decisões moldadas por algoritmos? Em troca de produtividade, eficiência e precisão, sacrificamos algo tão intangível quão precioso: a capacidade de errar, refletir e aprender como indivíduos, o nós, o vós, o eles, o sermos imperfeitamente perfeitos, humanos.
O impacto da IA no panorama social não pode ser ignorado. Redes sociais impulsionadas por algoritmos, famintos que nem cães, promovem a criação de bolhas ideológicas, de pensamento e polarização. Ao invés de nos unir fomenta a desinformação e a divisão.
No entanto, seria ingénuo demonificar a IA “A vida ri-se das previsões e põe palavras onde imaginámos silêncios, e súbitos regressos quando pensámos que não voltaríamos a encontrar-nos” – Saramago, in “A Viagem do Elefante”. Uma navalha tanto pode ser utilizada para descascar uma maçã como para matar; o impacto da IA depende do mesmo livre arbítrio que impera na navalha, de como a sociedade escolhe usá-la. A pergunta “Quo vadis, sociedade IA?” não é apenas retórica. O caminho a seguir exige que nos questionemos de forma constante acerca dos limites éticos, legais e sociais da IA. Urge equilibrar inovação com responsabilidade, eficiência com empatia e, progresso com humanidade! A mão que tudo nos dá não precisa de ser a mão que tudo nos tira, desde que não abdiquemos do controlo deste nosso novo mundo, que veio para ficar.
Antes do nascimento da IA, em “AC.IA”, dizia o ditado que “Uma mão lava a outra, e as duas lavam o rosto”. Será ainda assim em “DC.IA”? Aos dias de hoje, perante este novo mundo, cada vez mais máquina e menos “humano”: Uma mão lavará a outra, estando somente uma das duas suja?
“O homem está condenado a ser livre. Condenado, porque não se criou a si próprio; e, no entanto, livre, porque uma vez lançado ao mundo é responsável por tudo quanto fizer.” – Sartre, in “O existencialismo é um humanismo”. O destino da sociedade IA está nas nossas mãos, humanas. O mundo é novo, mas o mundo novo é nosso, ainda.
Para o leitor, com estima:
Génesis, Kissinger, Mundie & Schmidt: Maravilhoso livro, escrito por Henry A. Kissinger, em coautoria com os tecnólogos Craig Mundie e Eric Schmidt, é um livro que nos é trazido com uma promessa… a de nos preparar para o amanhã e para navegar o oceano conturbado da IA. (Kissinger [1923-2023], foi conselheiro de vários presidentes norte-americanos e de líderes mundiais, e recebeu o prémio Nobel da Paz e a Medalha Presidencial da Liberdade. Autor de extensa obra, escreveu, juntamente com Eric Schmidt e Daniel Huttenlocher, A Era da Inteligência Artificial).
(*) Doutorando pela FMUC