O Campeão das Províncias aproveitou a distinção do atleta Rui Sousa com a Medalha de Mérito Desportivo do Município de Montemor-o-Velho para visitar a Unidade Funcional daquele concelho da APPACDM Coimbra e saber um pouco mais sobre ambos. Falámos com a psicóloga e dirigente Inês Afonso e, claro, com o campeoníssimo e sorridente e tranquilo Rui, que nos envergonha a todos com tantos treinos diários, bidiários e tempo ainda para participar em campeonatos no Brasil, no Peru, cozinhar na instituição e em casa, e ainda limpar os arruamentos do Castelo de Montemor, entre outras tarefas. A Inês diz que estar com o Rui e outros utentes ajuda a pôr a nossa vida, a nossa pressa e os nossos stresses, em perspectiva. Talvez seja isso, talvez o Rui ande por aí para nos ensinar, com o seu cromossoma extra, que a vida pode ser extraordinária, se a olharmos com outros olhos, mais brilhantes, como os dele.
Quando, há 43 anos, o pequeno Rui nasceu, na freguesia da Carapinheira, concelho de Montemor-o-Velho, e os médicos lhe diagnosticaram Síndrome de Down ou Trissomia 21, a última coisa que provavelmente terá passado pela cabeça da jovem mãe terá sido que aquele bebé, tão pequenino e ainda mais indefeso do que os demais, acabaria por dar muitos motivos de orgulho.
Em 1981, em Portugal eram poucas e parcas as instituições de apoio não apenas às famílias mas também às crianças, mas as que existiam e as que iam sendo criadas rapidamente se tornavam vitais. Sobretudo quando, sendo os seus utentes crianças, as famílias eram também de qualidade. Essa foi a sorte do Rui, de sua graça completa Rui Manuel Figueira Sousa, nascido com ingrediente extra, o tal cromossoma 21, e com uma mãe extraordinária, que ainda hoje é o seu maior suporte.
A bênção da APPACDM
Aos 13 anos, a mãe de Rui procurou uma alternativa ao percurso escolar tradicional para o Rui. Teve uma sorte que, se fosse hoje, lhe estaria vedada. Bem? Mal? Não nos cabe julgar aquilo que especialistas que dedicam anos das suas vidas a estudar e analisar decidem mas, no caso do Rui, sair da escola e integrar a Unidade Funcional de Montemor-o-Velho da APPACDM Coimbra em Outubro de 1994, parece ter sido uma bênção. Está lá há 30 anos. Não são dias, semanas ou meses. São 30 anos. E basta vê-lo passar nos corredores, com a bata que usa na cozinha, onde esteve a aprender a fazer pastéis, ou, com mais dez colegas, devidamente equipado com as cores de Portugal, pronto para sair para o ginásio com que a APPACDM tem uma parceria, de sorriso rasgado, para perceber que está na sua segunda casa.
“O Rui adora estes rituais. Vai para a cozinha com a sua bata. Quando sai vai lavar-se, dobra a bata direitinha e veste a roupa para a actividade seguinte que, hoje, será na box do crossfit, num ginásio com que temos uma parceria”, explica a jovem psicóloga Inês, a quem o Rui acena, ao passar pelo corredor, com um sorriso onde parece caber o mundo inteiro. “Está todo feliz de ver aqui uma pessoa nova, adora conhecer gente”, explica Inês. Mas Rui está sempre bem-disposto, garante a psicóloga. Nem todos os portadores de trissonomia 21 são assim, mas muitos são-no.
Não é, aliás, à toa que cada vez vemos mais famílias, em livros, revistas e redes sociais, a admitirem que, por muito tenha sido um choque saberem que o bebé que desejaram saudável nasceu, afinal, diferente do imaginado, ao fim de algum tempo, e mesmo ao fim de vários anos, esse ser humano se tornou a ‘cola’ da família, aquele que tem o abraço sempre pronto, o que não julga, o que não tem nunca uma palavra azeda, o que parece mais predisposto a amar. São tudo rosas? “Não. Faltam-nos meios, faltam-nos fundos para tudo o que gostaríamos de poder proporcionar-lhes”, lamenta Inês. “Ainda agora conseguimos, felizmente, uma doação que vai permitir termos água quente para eles poderem lavar-se depois de algumas actividades. Mas é porque nós, técnicos, achamos que é o melhor para eles, porque eles não se queixam”, sublinha, enternecida. “Mas, por exemplo, eles fazem actividades socialmente úteis, nomeadamente limpar os caminhos do Castelo (de Montemor) e depois recebem uma retribuição consoante as horas e a produtividade, e nós depois, com os pais, ajudamos, ensinamos, a gerir essas quantias. Mas seria agradável poderem tomar um banho quente quando regressam ao centro”, explica.
“O Rui, por exemplo, adora ficar limpinho, está sempre a trocar de roupa, quando vem da equitação terapêutica é o primeiro a ir trocar-se, e eu sou capaz de andar o resto de dia com as botas”, brinca. Mas o Estado não contribui? “Eles recebem pensões, e as famílias comparticipam, mas é muito pouco, todas as terapias são caras, se não fossem as parcerias… mesmo os campeonatos, muitas vezes é tudo feito com muito esforço das famílias, porque vêem o empenho deles, e têm verdadeiro orgulho neles. O Rui, por exemplo, vem sempre cá partilhar as medalhas que ganha com os amigos e colegas, e não é para se gabar, é mesmo para partilhar a alegria”, explica.
30 anos não são 30 dias
Não podemos viver 30 anos na mesma casa e ser felizes? Podemos, pois. Sobretudo se temos uma patologia que requer rotinas, previsibilidade, e que beneficia do sentido de utilidade, socialização e trabalho em equipa. No Centro de Actividades e Capacitação para a Inclusão (CACI), o Rui e mais 29 utentes adultos encontram isso tudo e muito mais. Este não é, seguramente, um lugar onde se possa trabalhar sem gostar do que se faz. Sem gostar dos utentes, sem querer dar-lhes uma palavra, um afago, um incentivo. Talvez também por isso haja lista de espera. Mas a espera é longa, porque não há data para sair, não é suposto sair quando se está ali com patologias que são geríveis mas não têm cura, e requerem acompanhamentos de vários e diversificados profissionais. Fizemos à psicóloga Inês as perguntas difíceis. Como lida o Rui, e outros como ele, com o envelhecimento? Percebe-o bem? Custa-lhe, menos, tanto ou mais do que a nós, com o número regular de cromossomas, ver a imagem que o espelho cruel nos vai devolvendo, ano após ano? “Reage bem, com naturalidade, o mais difícil são as mazelas do tempo na capacidade física mas ele vai dizendo que já não consegue fazer tantas flexões porque já não é novo e pronto, reduz-se qualquer coisita, é tudo muito normal”, explica. Cada vez mais fico com a sensação de que o termo, politicamente incorrecto, de deficiente, se aplica mais a mim e a outros como eu, do que aos utentes da APPACDM, mas adiante. Pergunto-lhe ainda como reagem os pais aos avanços da medicina nesta área, e explico porquê: quando, há 40 anos, eu própria era miúda, lembro-me de ouvir dizer que era ‘normal’ as crianças com estas patologias não sobreviverem aos pais. O que, sendo trágico, doloroso e dramático, dava pelo menos aos pais extremosos o alívio de saberem que estariam até ao fim a cuidar dos seus meninos com amor e dedicação totais. E agora, que a esperança de vida para estas pessoas aumentou e pode atingir a de qualquer outro cidadão, sobrevivendo assim aos seus pais, como é que estes lidam com isso? “É uma preocupação comum, e temos muitos pais que os inscrevem em lares residenciais, sobretudo porque não querem sobrecarregar os irmãos nem correr o risco de terem o filho mal cuidado, mas temos poucos lares”, admite Inês.
Ai, e o desporto do Rui!
Há tanta coisa interessante sobre o Rui e a sua segunda casa que quase me esqueci do tanto que ele trabalha todos os dias para ter o direito, a que não renuncia, de vestir a camisola de Portugal e trazer, para o seu País, tantas medalhas. Aqui vai, então, o palmarés do nosso heróico e desportista Rui Sousa: É atleta federado na Anddi Portugal- Associação Nacional de Desporto para Desenvolvimento Intelectual – e tem participado, com sucesso, em várias competições a nível nacional e internacional.
Foi recebido pelo Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, juntamente com os restantes elementos da Selecção Nacional de FutDown (atletas com Síndrome de Down), como resultado da conquistou do título de Campeã da Europa, em Novembro de 2018.
Rui Sousa sagrou-se vice-campeão de Futsal nos Campeonatos da Europa SUDS (Federação Internacional de Desporto para os atletas com Sindrome de Down), que decorreram em Pádua (Itália), em 2023; participou na 1.ª edição dos EuroTriGames (Jogos Europeus da Trissomia), na cidade italiana de Ferrara, em 2023. Em atletismo alcançou o 2.º lugar na estafeta 4x400m. Representou a Selecção Nacional que disputou o 3.º Campeonato do Mundo de Futdown, no Perú (Lima), em 2022;
Sagrou-se campeão de Portugal em Remo Indoor 2022 – Síndrome de Down, em Anadia; Participou no 2.º Campeonato do Mundo de Futsal Down em Ribeirão Preto, Brasil, em Junho de 2019. Também participa em campeonatos de equitação e natação, mas o remo indoor é mesmo a sua modalidade preferida.
Força, Rui, mostra aos jovenzinhos com qualquer número de cromossomas que os 40 são os novos 20! E obrigada, foi mesmo um prazer conhecer-te.
Texto: Andreia Gouveia
Publicado na edição impressa do Campeão das Províncias de 7 de Novembro de 2024