Joaquim Manuel Barros de Sousa nasceu a 22 de Outubro de 1936 – há 88 anos e uns dias, portanto – em Coimbra, mas é indiscutivelmente da Figueira da Foz, como o são a Torre do Relógio, a Praia da Claridade ou, por que não? os gelados da Emanha e os passeios no Picadeiro. É um ex libris da cidade, do Concelho, melhor dizendo, e se não figura em postais, bom, é porque, ao contrário de outros, muitos, por esse mundo adentro, não é dado nem ao auto-elogio nem à auto-homenagem disfarçada, tantas vezes mal, de preito de gratidão alheia esculpida em estátua de pedra ou placa toponímica.
E podia, já que se Joaquim de Sousa nunca foi, para usar um termo por demais conhecido, «o dono disto tudo», a verdade é que foi quase tudo na Figueira da Foz: presidente da Câmara (1980 a 1982), administrador do IPTM (2002 a 2007), presidente, entre muitas outras coisas, do Ginásio Clube Figueirense (GCF) e (ainda é) Provedor da Misericórdia-Obra da Figueira (MOF), entre muitas outras actividades, funções e cargos desempenhados em diversas instituições públicas e associativas. Isto, fora o que foi no país: deputado à Assembleia da República e Secretário de Estado, entre outros cargos de nomeação. Tudo isto ininterruptamente e praticamente desde que começou a ter consciência de si.
Campeão das Províncias [CP]: Como foi a sua infância?
Joaquim de Sousa (JS): A minha mãe, Maria Luiza, era professora do jardim-escola, desistiu quando eu nasci, era da família Barros, da Marinha Grande. O meu pai, Joaquim de Cunha e Sousa, era engenheiro, de uma família oriunda de Arcos de Valdevez, que se sedeou na Figueira com comércio. Quando eu tinha oito anos, o meu pai faleceu de repente e foi um choque muito grande para a minha mãe. Eu fui tirado de casa pelos vizinhos da frente, que eram o Engenheiro António Rei, filho do célebre Regente Rei e que era administrador florestal, e a mulher. Acolheram-me uns dias, até voltar para casa. Mas a minha mãe sofreu imenso, imenso, imenso. E nunca voltou a casar nem quis voltar ao jardim-escola.
[CP]: Como é que uma criança tão nova, nesse contexto, continua tão activa? Teve algum mentor…?
[JS]: Até aos oito anos tive o meu pai, que foi campeão nacional de remo pelo Ginásio. Depois, foram muitas influências, acho que foi produto de circunstâncias, para combater o isolamento na família. Eu fui criado ali um bocado… com pessoas amigas. Para não estar naquele ambiente deprimente de casa. E fui crescendo. Estudei no antigo liceu, depois andei no Colégio Academia Figueirense, mas no 6.º e 7.º anos disseram à minha mãe que era melhor eu ir para Santarém, onde tinha uma tia, e lá fui. Só no ano seguinte é que entrei na Universidade (de Coimbra), fazendo exame de aptidão já na Figueira. O curso foi muito atribulado…porquê? Porque eu entrei para Engenharia, para os preparatórios, depois é que mudei para Matemáticas, mas em 1959 veio a tropa e deu cabo do curso todo, a mim e a muitos. O tempo normal era ano e meio, estive em Vendas Novas, e depois tive a sorte de ser colocado aqui, mas não efectivo. Dei aulas e passados dois meses estava lá outra vez, já me tinha despachado da farda e tudo. Consegui não ir para as hoje ex colónias, mas só me vi livre daquilo, sei lá… fui chamado várias vezes. Foi uma das razões para mudar para Matemática. Consegui passar aos Serviços Auxiliares e depois ser dispensado, mas só ao fim de três anos ou quatro. Isso desregulou a vida de imensa gente. Depois comecei a dar aulas ao mesmo tempo que estudava, primeiro na actual Bernardino Machado, antiga Escola Comercial e Industrial da Figueira da Foz. E depois foi o percurso que se conhece.
[CP]: Mas teremos de o recordar, pelo menos um pouco…
[JS]: Aderi ao Partido Socialista (PS) em Maio de 1974, em pleno PREC, porque entendi que o PS era aquele que tinha condições para acabar com aquela loucura toda. E assim foi. Militei na Figueira, ia ao Porto, a Lisboa, enfim. Após o 25 de Novembro, Mário Soares formou o 1.º Governo Constitucional e o Ministro da Educação, Sottomayor Cardia, com quem eu tinha uma boa relação, chamou-me para Secretário de Estado da Juventude e Desportos. Aquilo tinha sido a Secretaria de Estado da Acção Social Escolar, com o Avelãs Nunes, depois Desportos e Juventude, e nesse governo é que passou para Juventude e Desportos. Eu entrei com duas Direcções-Gerais, incluindo o Fundo de Apoio aos Organismos Juvenis (FAOJ), quando saí tinha cinco. E dava-se o caso curioso do Partido Comunista Português (PCP) ter mantido, após o 25 de Novembro, o domínio dessa área. Quando eu entrei, não havia um delegado regional que não fosse do PCP, era total o domínio deles, estava tudo minado. O Cardia dizia, com piada, que eu destruí o sonho do jovem Cunhal. Há até uma história engraçada. Um dia pede-me uma audiência o Padre Alves de Campos, antigo assistente nacional religioso da Mocidade Portuguesa, a dizer que tinha sido reformado compulsivamente em 1974. “Estou reformado compulsivamente mas não recebo porque há um despacho do seu antecessor, Avelãs Nunes, que impede que me paguem as pensões”, disse-me ele. E eu disse que não podia ser. Mas era, o senhor não recebia a reforma a que tinha direito desde 1974, e isto já foi no final de 76. Levei o assunto ao Ministro, ao Cardia, tivemos sempre uma cooperação absoluta, ele viu o assunto e disse logo «Isto é perfeitamente ilegal… escreva aí: Proponho a V.Exa. que revogue este despacho por nulidade jurídica», e ele deu o despacho e acrescentou «já pode dizer que propôs a nulidade jurídica de um despacho de um professor de Direito». E o senhor recebeu as reformas a que tinha direito.
[CP]: Não deve ter sido a única ‘correcção’ que fez…
[JS]: Não, esses dois anos dediquei-me a desfazer aquele nó. Tenho para aqui a lista da exoneração de delegados regionais… Leiria e Braga, Setembro de 1976, Setúbal igual, vai até 5 de Novembro desse ano, 18 distritos, ficaram dois, um aqui, o Mendes Silva, e um no Porto, o Puga, que eram tipos que estavam naquilo lateralmente. Em Abril de 76, uma edição do FAOJ tinha isto: «História de Uma Cooperativa – Anda, camarada, anda, vamos fazer a união, avante estrela vermelha, esmaguemos a reacção». Era assim. Foi a mim que me coube, com o apoio sempre do Ministro Cardia, acabar com isto.
Foi sempre, mais do que um homem com visão, um fazedor, um concretizador dessas visões. Ainda no governo, assinou um acordo de cooperação desportiva, até então inédito, com os EUA. Na sua experiência autárquica na Figueira da Foz, deu pelouros a todos os vereadores, oposição incluída, e na sua longa passagem pelo GCF destacam-se, com a sua marca pessoal, várias iniciativas culturais, de que é expoente máximo os ainda existentes Prémios Bento Pessoa.
[CP]: Nunca tem dúvidas, nunca se cansa?
[JS]: Viver é fazer coisas. Assinei um acordo com os EUA, em 1976, e foi uma pedrada no charco. Eu era Secretário de Estado e, após conversações com o adido cultural Robert Jordan, assinei com o Embaixador Frank Carbucci o primeiro protocolo com finalidades exclusivamente desportivas que os EUA alguma vez tinham assinado. E foi sempre cumprido!
Na câmara, geri-a três anos, sem maiorias nem minorias. Reuni os vereadores, sete na altura, até porque não são precisos nove para nada, e disse que estava disposto a dar pelouros a todos e a nomear dois vice-presidentes. E assim foi, três PS, três AD e um CDU, e correu bem. Depois, bom, já o escrevi no livro, com o Aguiar (de Carvalho) foram os 15 anos negros da história da Figueira.
Quanto ao Ginásio, foi sempre um clube que progrediu tendo atividade além da desportiva. Refiro-me a actividade cultural, encontros, etc., e essa parte está um bocado perdida. Estamos agora, a Tertúlia Bento Pessoa, com o apoio do Casino Figueira, a preparar os Prémios, cuja Gala será daqui a sensivelmente um ano, neste momento ainda estamos a preparar o júri, que é uma parte importante, mantendo-se o Eduardo Marçal Grilo como presidente desde a primeira edição.
[CP]: O que é que mais gostou, de tudo o que fez, de fazer? E o que é quer fazer nos tempos próximos, para além do livro, dos Prémios Bento Pessoa e de ver acabadas as obras do Páteo de Santo António?
[JS]: De dar aulas. Gostei sempre, e dei aulas em diferentes épocas, a diferentes gerações de discentes. Dar aulas actualiza a pessoa. Mas agora quero completar este mandato da MOF, até 2026, e depois procurar uma sucessão equilibrada e que mantenha a instituição à tona. Há Misericórdias grandes que já fecharam, não é uma tarefa fácil.
[CP]: O que é que pensa da qualidade dos nossos políticos actuais?
[JS]: Cada tempo tem os políticos que merece. Mas ainda há gente boa. Só que se afastam ou são afastadas. Veja o caso do Passos Coelho. Ou da Leonor Beleza.
Quanto ao Chega, por exemplo, acho que vão diminuir o número de deputados já nas próximas eleições, acho que foi um fenómeno isolado. Mas hoje só acompanho as notícias lendo o Observador, o Diário de Coimbra e o Campeão das Províncias.
[CP]: E para a Figueira, o que é que deseja?
[JS]: A Figueira tem de captar investimento. O último grande investimento foi a Soporcel. O mundo mudou, certo, talvez a receita tenha de mudar, mas não será a incidir em faits divers, festas e romarias, que é o que as câmaras continuam a insistir em fazer, que o vão conseguir.
Andreia Gouveia