Vivemos numa sociedade de correria. Os ponteiros como complemento directo da escravatura do relógio-de-ponto. Da esperança do lazer de um tempo de repouso que não se tem. É urgente chegar cedo à praia para aparcar o carro. É preciso espetar o chapéu junto ao mar antes do batalhão de gente que vai chegar. Sentar na mesa do restaurante e o parceiro em pé encostado a uma parede, a ver impaciente quando terminamos o almoço para se sentar no nosso lugar cobiçado. Dei comigo a pensar em tudo isto. Nesta maratona de viver, somos todos atletas de olimpíadas. A cada um de nós as suas medalhas. Daquelas que não se anunciam nos jornais, nem nas guerras de audiências das estações de televisão. São os nossos troféus da vida.
A correria dos comboios na correria da vida. Ainda estamos na vertigem do Alfa Pendular, mas já se projecta mais velocidade. Mas mais velocidade desenfreada para quê?. Quais os benefícios do tumulto civilizacional? Do trepar de uns por cima de outros, em guerras de mercado e de patrões invisíveis, que tudo controlam de uma etérea parte do globo, de onde são donos e senhores de novas formas de escravidão. Do recriar da ideologia espartana dos tempos modernos, no endeusar dos mais fortes e da aniquilação dos mais fracos por factores intrínsecos à natureza humana. Do engolir comprimidos ao almoço para as maleitas do coração doente das grilhetas que o acorrentam à competição laboral impiedosa e sinistra.
Com pressa de nada
Dei comigo sentado num Alfa Pendular com pressa de nada. Um pequeno écran no fundo da carruagem, diz-me que o comboio vai a mais de duzentos quilómetros por hora. Será para me impressionar? Vou passando os olhos por um jornal que me é oferecido e um café que balança na chávena ao ritmo do dançar aveludado dos carris, como num tapete voador de Aladino dos imortais contos de Xerazade. Vivemos num Conto das Mil e Uma Noites de utopia e não percebemos.
As mordomias ferroviárias não me traem o passado. Um passado de carris. Pela Beira Baixa e pelo Alentejo. Olhar o Tejo e as Portas do Rodão, saudar o Castelo de Almourol ou citar Vila Nova da Barquinha, é abrir uma sebenta de poesia. Tudo ao ritmo de quem lê devagar, a saborear as rimas da paisagem. De perguntar ao revisor se vamos no horário certo, e ele a esclarecer que vamos um pouco atrasados em relação ao tempo da “tabela”. Tabela é uma palavra doce. Cria uma relação de proximidade e empatia entre o passageiro no seu papel de viajante de um tempo de relíquia, e o funcionário que do seu enorme relógio de pulso nos dá uma informação honesta e sem filtros, sem rodeios ou desculpas. Vamos atrasados e pronto!
É também assim o trote sobre rodas do rocinante alentejano. O balançar da carruagem num adornar lento de um berço de criança, no sono profundo de uma almofada de solidão do viajante que sonha com o mistério dos sobreirais na vastidão da campina. Se o comboio não vem à “tabela” não morre o mundo. Se a espera é mais demorada, uma sandes de presunto alivia o clamor do tempo que não se esgota no caminhar dos dias. O gole de vinho encorpado e os dedos sobejos a limpar os lábios à guisa de guardanapo, é uma outra página de poesia escrita pelas mãos calejadas do universo popular.
Recuso os painéis gigantes dos comboios de correria. Recuso as gentes que se acotovelam como formigas na escravatura da vida. Deixem-me viver ao ritmo do meu passado. E quando eu partir para o outro lado do Tempo, ponham uma máquina a vapor na sua fumarada espessa a envolver o Mondego em cima da velha ponte ferroviária do Choupal, que com o seu silvo agudo a trespassar a Mata, me informe que não tenho que me lastimar da minha desdita terrena, porque parti à “tabela” e sem destino na transitoriedade da Vida.