Nos últimos anos, o ordenamento jurídico português tem assistido a um significativo incremento de processos de grande envergadura, conhecidos como mega processos. Trata-se de processos que as mais das vezes envolvem múltiplos arguidos, assistentes, testemunhas, defensores, densa prova documental, pericial e são geralmente associados à criminalidade organizada e económico-financeira (crimes de fraude fiscal, branqueamento, corrupção, etc.), em que o interesse público associado aos processos desta natureza coloca o sistema judicial sob intenso escrutínio.
Neste contexto, pensar sobre os mega processos é, nos dias de hoje, essencial para compreender as dinâmicas e os desafios que este s impõem ao ordenamento jurídico português.
Na verdade, a tendência de crescimento dos mega processos no panorama judicial levanta importantes questões sobre a eficácia e a celeridade da resposta judicial. A concentração de elementos processuais num único processo pode, por um lado, promover a eficiência administrativa e a uniformidade das decisões judiciais. Por outro lado, a complexidade e a dimensão desses processos podem alongar significativamente a duração dos julgamentos, sobrecarregar o sistema judicial e comprometer os direitos fundamentais dos arguidos.
Enfim, é inegável que a temática dos megaprocessos levanta sérios desafios relacionados mormente com a complexidade processual, a duração dos processos e a salvaguarda dos direitos dos arguidos.
Como surgem os mega processos?
Como é sabido, no plano processual penal, a cada crime corresponde um processo e um julgamento, para o qual é competente determinado tribunal, em função das regras da competência material, funcional e territorial.
Esta regra sofre, contudo, excepções, permitindo o legislador que, em determinados casos, seja organizado um só processo para uma pluralidade de crimes, desde que entre eles exista uma ligação que torne conveniente para a melhor realização da justiça que todos sejam apreciados conjuntamente.
As vantagens de atribuir a um mesmo Tribunal a possibilidade de julgar os casos em que vários crimes eram cometidos pela mesma pessoa ou por várias pessoas foram sendo reconhecidas, paulatinamente, ao longo do tempo, remontando ao direito Romano, estando presentes nas Ordenações, nas Reformas Judiciárias do século XIX e no Código de Processo Penal de 1929.
A conexão de processos para julgamento conjunto de vários crimes, regulada na Secção III, Capítulo II, Título I, do primeiro Livro da primeira Parte do Código de Processo Penal, está correlacionada com a competência do tribunal, dependendo da existência de vários crimes com uma concreta ligação – subjectiva (o mesmo agente) ou objectiva (vários crimes) – a justificar a unificação de julgamento por um só Tribunal. A conexão opera, assim, quando o agente cometeu vários crimes através da mesma acção ou omissão, ou, quando os crimes hajam sido praticados pelo mesmo agente, na mesma ocasião ou lugar e entre eles houver um relacionamento recíproco.
Sucede, porém, que estas regras legais de competência por conexão vêm sendo aplicadas excessivamente, resultando num alargamento do objecto do processo à medida que a investigação prossegue.
Não se olvida que o Ministério Público, por força dos princípios da legalidade e da oficialidade, está obrigado à investigação de outras questões de eventual relevância criminal que emirjam no decurso do inquérito. Como não se ignora que o artigo 29.º do Código de Processo Penal consagra a unidade e apensação dos processos.
Não obstante, a verdade é que o artigo 30.º do Código de Processo Penal estabelece que o Tribunal, oficiosamente ou a requerimento do Ministério Público, do arguido, do assistente ou do lesado, pode fazer cessar a conexão e ordenar a separação de algum ou alguns processos, sendo de destacar: a) A conexão afetar gravemente e de forma desproporcionada a posição de qualquer arguido ou houver na separação um interesse ponderoso e atendível de qualquer um deles, nomeadamente no não prolongamento da prisão preventiva; b) A conexão puder representar um risco para a realização da justiça em tempo útil, para a pretensão
punitiva do Estado ou para o interesse do ofendido, do assistente ou do lesado; c) A manutenção da conexão possa pôr em risco o cumprimento dos prazos de duração máxima da instrução ou retardar excessivamente a audiência de julgamento; d) A conexão puder retardar excessivamente o julgamento de qualquer dos arguidos; ou e) Houver declaração de contumácia, ou o julgamento decorrer na ausência de um ou alguns dos arguidos e o tribunal tiver como mais conveniente a separação de processos.
A significar, pois, que o legislador processual penal consente a separação de processos, mas mais, está ciente das embaraços emergentes dos mega processos. De tal modo que, na mais recente alteração legislativa ao aludido artigo 30.º, introduzida pela Lei n.º 94/2021, de 21 de Dezembro, o legislador aditou outras situações que justificam a separação de processos: a conexão afectar gravemente e de forma desproporcionada a posição de qualquer arguido (o que acrescentou à alínea a)); a conexão puder representar um risco para a realização da justiça em tempo útil (segmento aditado à alínea b)); a manutenção da conexão possa pôr em risco o cumprimento dos prazos de duração máxima da instrução ou retardar excessivamente a audiência de julgamento (actual alínea c)).
Podem ser encontradas outras disposições em legislação extravagante que evidenciam igualmente a preocupação do legislador com os embaraços causados pelos mega processos, é o caso, por exemplo, o artigo 42.º da Lei n.º 34/87, de 16/07 (Crimes de responsabilidade dos titulares de cargos políticos) que estabelece que “A instrução e o julgamento de processos relativos a crime de responsabilidade de titular de cargo político cometido no exercício das suas funções far-se-ão, por razões de celeridade, em separado dos relativos a outros corresponsáveis que não sejam também titulares de cargo político”.
Afigura-se ser de concluir que a problemática dos mega processos não é um problema legislativo. E poder-se-á aventar que a emergência dos megas processos resulta tão-só da gestão processual do Ministério Público, designadamente durante a investigação.
O(s) problema(s) dos mega processos
Como já se adiantou, os megaprocessos trazem consigo muitos inconvenientes.
Diríamos que o mais patente – e mediatizado – se reconduz aos grandes atrasos na justiça penal. De facto, ao serem proferidas Acusações com centenas de páginas, com um universo factual de enorme dimensão e complexidade, autos com milhares de folhas, extensa prova documental, inúmeras testemunhas, elevado número de arguidos com direito a exercero contraditório… é muito difícil (para não dizer impossível) concluir os processos, nas palavras da lei, “em tempo útil” ou até mesmo antes da prescrição do procedimento criminal.
Veja-se que, no corrente ano, o Gabinete de Apoio aos Magistrados Judiciais fez um levantamento dos 140 processos de especial complexidade que correm termos no Comarca de Lisboa desde 2013. Destes 140 processos de especial complexidade apenas 68 já transitaram em julgado. A média de tempo para transitarem é de 8 anos e 1 mês, sendo que 31% destes processos demoraram mais de 10 anos até transitarem. Os que ainda não transitaram duram há uma média de 9 anos e 3 meses, sendo que 9% destes processos decorrem há mais de 15 anos sem que tenham transitado. Quanto à fase de inquérito, dos 132 processos que foram analisados nesta fase, o inquérito durou em média 3 anos e 8 meses, 49% destes inquéritos demoraram mais de 3 anos a ser concluídos e 6% estiveram sob investigação mais de 7 anos.
Como se sabe, uma Acusação extensa conduz a uma Instrução longa (pois o que se pretende é confirmar a Acusação) e o mesmo sucede com o Julgamento (com dezenas ou centenas de interrogatórios, inquirições, exames e outros actos de produção de prova, cujo agendamento se terá de compaginar com as várias agendas, não só dos magistrados e dos
advogados, mas também das salas, que têm de ser espaçosas, muitas vezes fora dos tribunais). Sem esquecer os numerosos Recursos que venham a ser interpostos, respondidos, decididos, uns com efeito meramente devolutivo, outros com efeito suspensivo…
Outro dos inconvenientes é a forma desproporcionada como podem afectar a posição dos intervenientes processuais, nomeadamente o direito do arguido a que a causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo, consagrado no n.º 4 do artigo 20.º da Lei Fundamental, mas também a posição das vítimas.
Acresce ainda que, muitas vezes, quando a delonga do Inquérito começa a ameaçar o prazo prescricional, o arguido vê-se confrontado com as pressas em deduzir Acusação (para assim, interromper, a prescrição do procedimento criminal) constituindo o seu interrogatório um mero pró-forma, pois não haverá então tempo para reformular a tese acusatória.
E volte a frisar-se que os mega processos têm mais frequentemente sobre si os holofotes do escrutínio público, o que naturalmente representa uma maior pressão mediática sobre o sistema judicial e demais intervenientes.
Poder-se-á pensar que a organização de um só processo para julgamento de uma pluralidade de crimes representará, com maior probabilidade, uma mais esgotante produção de prova e uma melhor compreensão global da actividade criminosa. Contudo, atenta a vastidão da prova nos mega processos, parece-nos que, mais provavelmente, as provas estarão dispersas. Ademais, mais do que uma compreensão global, deve procurar-se uma exaustiva compreensão da actividade criminosa de cada arguido.
De referir ainda que a existência de um único processo para múltiplos crimes pode prejudicar a percepção do Tribunal, sobretudo se houver crimes de gravidade muito diversa, designadamente no que tange ao entendimento de todas as nuances de cada “caso” de menor gravidade e/ou dimensão.
Acresce que, na jurisdição criminal, os problemas da delonga excessiva radicam na própria natureza e fins das penas, que, como se sabe, se diluem com o passar do tempo.
As vantagens dos mega processos
A organização de um único processo tenderá a evitar que testemunhas e arguidos comuns tenham de ser, respectivamente, inquiridas e interrogados separadamente em cada processo e assumam depoimentos ou declarações diferentes em cada um deles.
Acresce a minoração do perigo de uma multiplicidade de decisões sobre infracções conexas se contradizerem materialmente.
A vantagem advinda para o arguido que, julgado conjuntamente, pelos diversos crimes, vê a sua situação jurídico-criminalmente definida.
Conclusão
Não sendo a questão dos mega processos um problema legislativo, mas tão só uma opção de gestão processual, em prol de uma Justiça mais célere e atempada, é tempo de refrear a tendência para os mega processos e adequar a gestão processual à introdução de factos em juízo, ao seu julgamento em prazo proporcionado e à obtenção de uma decisão transitada em julgado antes do esgotamento dos prazos de prescrição do procedimento criminal, pois, num Estado de Direito, um dos deveres a cumprir pela Justiça é garantir que as decisões definitivas dos casos sejam proferidas no prazo razoável e mediante um processo equitativo. É isso mesmo o que impõe a nossa Lei Fundamental.
(*) Advogado em Coimbra e membro do Conselho Superior de Magistratura